A necessidade de um dia mundial sem carro

Foi em outubro de 1994 que nasceu na Europa a idéia de um Dia sem Carro. Uma iniciativa para que as cidades européias, e mais tarde do mundo, repensassem o uso das ruas e a prioridade concedida aos meios de transporte motorizados.

Vinte anos depois, é certamente um equívoco de linguagem falar em um dia “sem carro”. Felizmente, tem sido natural promover um termo mais adequado ao período histórico em que vivemos. Temos hoje as semanas da mobilidade que gravitam ao redor do 22/09 e fazem do mês de setembro uma época de festividades e reflexão de todos que pensam e repensam a cidade como espaço de circulação e permanência de pessoas.

Uma premissa maior foi elaborada ao longo dos anos, tirar o carro da cena foi o primeiro passo para lembrar a todos que a maior necessidade urbana é promover a diversidade somada a humanização. É preciso primeiro oferecer opções fáceis, baratas, ágeis e agradáveis de deslocamento para qualquer pessoa que viva, visite ou transite dentro de uma cidade. Para garantir diversidade é preciso centrar o planejamento urbano na lógica da natureza humana.

Apesar de nossa capacidade de construir e operar poderosas máquinas, somos apenas humanos, demasiadamente humanos. Frágeis e mortais criaturas expostas aos elementos que souberam se adaptar a vida em qualquer parte do planeta, mas sempre com a premissa de tomar o caminho mais confortável e direto. O século XX, o do automóvel, moldou corações e mentes para se adequarem as necessidades das engrenagens movida a óleo, nos fizeram acreditar que circulação era algo a ser feito em carruagens motorizadas e que era preciso ordenar, direcionar e restringir a circulação livre das pessoas.

Certamente 1994 pode ser colocado como o ano que ajudou a marcar um novo ciclo, foi por isso uma escolha adequada ter um dia “na cidade sem meu carro”. Os desafios para as cidades propostos à época eram o impulso inicial para a reflexão. Aos administradores das cidades era preciso:

– Planejar e implementar um dia sem carros;
– Observar e estudar com afinco o que acontece nesse dia;
– E então produzir uma reflexão pública sobre as lições dessa experiência.

Foi preciso um tratamento de choque centrado no usuário do automóvel e a partir desse empurrão forçado, ajudar as pessoas acostumadas ao volante a experimentarem a cidade de outra maneira. O automóvel como estorvo urbano já é senso comum até para seus usuários, que em geral tendem a sempre ficar na defensiva quando confrontados sobre sua opção de transporte. Sendo as posturas defensivas em geral difíceis de serem modificadas, o desafio atual vai além do carro e de seu uso. Vinte anos depois, é válido propor algumas questões a serem colocadas em debate no 22 de setembro, uma compilação feita por Eric Britton do World Streets.

Perguntas a serem feitas e discutidas publicamente durante um dia sem carro:

Primeiro é preciso entender o atual estágio na promoção ao uso da bicicleta na cidade com um grupo inicial de perguntas:

  1. Incidência política: Como são vistas e qual o poder de influência dos grupos/ONGs ativistas pró-bicicleta na cidade (região ou país), como eles influem nas decisões relacionadas a políticas públicas, investimentos e fiscalização?
    • Em uma escala de “nenhum grupo ativista pró-bicicleta até uma organização forte com influência política.
  2. Cultura da bicicleta: A bicicleta já se (re)estabeleceu como meio de transporte cotidiano ou só para um pequeno grupo?
    • Em uma escala de zero bicicletas nas ruas, somente esporte/lazer até aceitação massiva da bicicleta como meio de transporte diário.
  3. Infraestrutura cicloviária: A cidade oferece infraestrutura secura e eficiente para a circulação da bicicleta?
    • Em uma escala de zero infraestrutura com ciclistas relegados ao compartilhamento forçado de ruas e avenidas até um alta quantidade de vias seguras e segregadas para a circulação.
  4. Comodidades para a bicicleta: Existem bicicletários ao ar livre em profusão, rampas em escadas, espaço dedicado em trens e ônibus, um mapeamento bem desenhado etc.?
    • Em uma escala de zero comodidades disponíveis até a presença massiva de comodidades e soluções inovadoras.
  5. Divisão modal da bicicleta: Qual o percentual de viagens feitas em bicicleta na cidade?
    • Em uma escala de menos de 1% a mais de 25%
  6. Divisão de gênero: Qual o percentual de ciclistas homens e mulheres?
    • De majoritariamente masculina a uma divisão equânime chegando até mais mulheres do que homens pedalando.
  7. Planejamento urbano: Qual a prioridade dada pelos planejadores urbanos em relação a infraestrutura cicloviária e quão bem informados eles estão em relação a tendências internacionais?
    • Em uma escala de planejadores urbanos rodoviaristas até os que pensam na bicicleta – e no pedestre – primeiro
  8. Moderação de tráfego: Quais iniciativas foram feitas para diminuir os limites de velocidade – Zonas 30 km/h, por exemplo – e de acalmia de trânsito em geral para garantir mais segurança para pedestres e ciclistas? Foram implementadas areas de acesso restrito para carros e também reduções estratégicas de estacionamento automotivo?
    • Em uma escala de nenhuma até uma extensa lista de medidas de moderação de tráfego que priorizem ciclistas e pedestres.
  9. Integração com o transporte público: Bicicletas em ônibus, metrô e bondes. Compartilhamento das faixas para ônibus. Integração tarifária. Treinamento para motoristas.
    • Em uma escala de zero integração até parcerias completas e entusiasmadas.
  10. Percepção de segurança: A percepção de segurança dos ciclistas, que se reflete nas taxas de uso de capacete, é positiva ou os ciclistas pedalam com medo por conta de iniciativas de promoção ao capacete e à cultura do medo?
    • Em uma escala de obrigatoriedade legal de uso do capacete até um baixo percenteual de uso de capacetes.
  11. Fiscalização: O uso da bicicleta recebe apoio legal com fiscalização ativa das autoridades locais, polícia e outros organizações?
    • Em uma escala de nenhum apoio até um apoio consistente que inclui multas pesadas, programas de remoção de veículos estacionados irregularmente, leis e regulamentos que defendam os ciclistas.
  12. Estratégia de desenvolvimento sustentável: A bicicleta é considerada parte de uma estratégia consistente com um planejamento urbano para a sustentabilidade?
    • Em uma escala de nenhuma estratégia, passando uma sem conteúdo real e promessas vazia, políticas inconsistentes até chegar a uma política de sustentabilidade articulada com a promoção ao uso da bicicleta.

Por um ranking de cidades amigas da bicicleta

Entender qual o nível de promoção ao uso da bicicleta da bicicleta é apenas o primeiro passo. As medidas elencadas acima são parte de uma provocação para que as cidades possam medir em que pé estão em suas medidas de promoção a mobilidade humana, já existem iniciativas em curso que podem e devem ser aplicadas para entender como as cidades podem construir um legado a partir do 22 de setembro. A partir desses levantamentos é possível inclusive pensar em maneiras de comparar as cidades, como base levantamento feito em todas as cidades que se engajem na comemoração do dia mundial da mobilidade.

Leia mais:
– Twenty Questions to consider to improve cycling In your city. (First guidelines for 2014 WCFD Citizen Cycle Audit )

Como construir ciclovias

 

Existe uma pedalada fundamental para tornar realidade as cidades para bicicletas. Desenvolver o repertório técnico dos planejadores urbanos. Claro que é necessária a vontade política de decidir em prol da mobilidade humana, mas sem as devidas referências, a cidade se constrói no mau improviso.

Recentemente o GT Ciclovia no Rio de Janeiro colaborou na elaboração do “Caderno de Encargos para a Execução de Projetos Cicloviários”, com a participação de diversos integrantes da administração municipal e representantes da sociedade civil, Transporte Ativo e ITDP inclusos.

O caderno busca abarcar desde as definições e características dos elementos de um sistema cicloviário além das ilustrações e especificações até a execução. Tudo para que as futurar obras sigam um padrão inteligível por quem irá planejar, executar e finalmente utilizar a infraestrutura.

Destaque para a apresentação:

 

De acordo com o que preceitua a legislação municipal, o nosso sistema cicloviário é formado por ciclovias, ciclofaixas, faixas compartilhadas e bicicletários.

Como elemento de apoio ao sistema cicloviário julgamos conveniente a adoção de medidas moderadoras de tráfego que objetivam controlar a velocidade dos veículos permitindo que ciclistas e pedestres fiquem mais protegidos. Dentre as inúmeras soluções nesse sentido, destacamos neste Caderno o estabelecimento das chamadas “Zonas 30 Km”, as interseções elevadas (speed table) além das sinalizações horizontais e verticais.

Também consideramos importante o estabelecimento de ciclorrotas, constituídas por caminhos, sinalizados ou não, que representam uma rota favorável ao ciclista. Não possuem segregação do tráfego comum, como pintura ou delimitadores, embora parte ou toda rota possa passar por ciclofaixas e ciclovias

 

Ou seja, planejar para a bicicleta envolve muito mais do que simplesmente traçar linhas em um mapa e modificá-las depois nas ruas. O ciclista, por ser mais importante que seu veículo, tem necessidades mais humanas e por isso mesmo mais complexas, do que as soluções viárias tradicionais. Além do caminho feito por ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas, também é preciso considerar o estacionamento. Mas mais importante do que esses elementos, são as soluções moderadores de tráfego, que buscam reduzir a velocidade dos veículos motorizados, reforçar as ruas como zona compartilhada por diversos meios de transporte e tornar esse espaço público de circulação compatível com a vida humana.

Projetos Cicloviários

Quem quiser saber mais sobre o Caderno de Encargos para a Execução de Projetos Cicloviários, ele está disponível para download no site da Prefeitura do Rio de Janeiro, juntamente com o Caderno de Instruções para elaboração, apresentação e aprovação de projetos geométricos viários urbanos, o Caderno de Referência para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades, a Legislação, em vigor, para a implantação de BICICLETÁRIOS e as resoluções do CONTRAN para sinalização vertical e horizontal.

Onde está o perigo nas ruas?

Qualquer busca sobre matérias que se relacionem a sinistralidades no trânsito para sempre buscar “chamar a atenção sobre o aumento de acidentes com ciclistas”.

Mais do que uma análise baseada em fatos, o discurso parece muito mais um reforço negativo de estigmatizar a bicicleta como um veículo “perigososo”. Mesmo que dados oficiais sempre comprovem que ao longo do tempo e com maiores incentivos ao uso da bicicleta, sinistralidades envolvendo ciclistas tendem a diminuir.

A famosa segurança em números diz na prática o que todo ciclista intui nas ruas. Mais pessoas em bicicleta é igual a menos ciclistas que sofrem as consequências da imprudência ou imperícia de condutores de veículos motorizados.

Os números mostram informações assustadoras (dados aproximados porque não as tenho em mãos agora): cerca de 50% das mortes no trânsito são de pedestres, outros cerca de 40% são de motoristas ou “caronas”.

Atenção inclusive para detalhe mais importante: 100% dos “acidentes” SEMPRE tem entre os envolvidos um veículo motorizado. Ou seja, a sinistralidade vem sempre movida a motor. Variam apenas as vítimas. Mais comumente são pedestres, mas podem ser condutores e passageiros e até ciclistas.

Resumindo, está muito errada a linha de raciocínio de quem quer dizer que pedalar nas ruas é perigoso. Os números mostram que perigoso é a combinação veículo motor+velocidade com a impunidade como outro incentivador.

O debate é antigo e durante o século XX foi vencido pelos promotores do uso do automóvel. Está na pauta a “propriedade” sobre o uso do espaço público das ruas. Por hora ainda sobrevive o conceito antigo, de que ruas são para motorizados, mas certamente esse discurso anacrônico perde espaço nos corações e mentes de quem pensa as cidades. Aos poucos perde também espaço no asfalto.

Infelizmente, até mesmo alguns ciclistas acabam muito focados nos “perigo da bicicleta” e esquecem a necessidade de resolver o real problema.

Chamam tanta atenção sobre a necessidade de se usar capacete, luvas, joelheiras, cotoveleiras etc. para pedalar, e esquecem dos reais causadores de mortes em nossas ruas. Que geralmente conduzem veículos pesados e velozes protegidos por enormes carcaças de aço presos apenas por cintos de segurança e eventuais air-bags. Mas sem qualquer dispositivo que salve as vidas de quem está do lado de fora, a pé ou de bicicleta.

Quem se preocupa muito com os “perigos da bicicleta”, acaba se prestando a dois papeis. Ou é inocente útil para reforçar o discurso do medo que garante a “propriedade das ruas” para os automóveis, ou tem realmente a intenção de manter a lógica das cidades presa ao século XX, aquele das guerras, do petróleo e do automóvel.

A importância dos cruzamentos

 

Em cada esquina está o maior risco que um condutor, ciclista ou pedestre enfrenta nas cidades. São nos cruzamentos entre ruas e avenidas que as mais graves ocorrências de trânsito acontecem. As vítimas em geral são os mais frágeis, mas nem sempre a carcaça de aço de veículos motorizados representa defesa suficiente.

Com essa lógica em mente arquitetos da Universidade George Mason projetaram “cruzamentos protegidos”, uma adequação para as esquinas típicas nas cidades norte-americanas e como eles podem ser modificados para se adequarem aos cidadãos em bicicleta. O mais importante no projeto no entanto talvez não seja exatamente a solução de arquitetura, mas sim a necessidade de adaptação dos espaços de circulação nas cidades as pessoas que por ela circulam.

 

Ainda é comum vermos ruas de bairro que se prolongam ao infinito (ou ao menos até o próximo cruzamento) sem qualquer barreira física ou até mesmo visual. Reordenar cruzamentos é uma maneira de lembrar as pessoas que por ventura estejam ao volante que existem pessoas do lado de fora e que a cada esquina, elas tem a oportunidade e os incentivos para cruzarem. As ruas do mundo precisam de mais atenção para as pessoas que estão nelas e ao redor delas. As soluções de projeto serão implementadas no seu devido tempo, até lá é preciso imaginá-las.

Para isso, vale assistir o vídeo demonstrativo (em inglês) que conta melhor o conceito de “cruzamentos protegidos”.

Protected Intersections For Bicyclists from Nick Falbo on Vimeo.

Um bairro para pessoas

Simulação do Túnel Major Rubens Vaz

Simulação do Túnel Major Rubens Vaz

Quem pedalava em Copacabana sempre soube que o bairro era perfeito para os deslocamentos em bicicleta. Um microcosmo em que tudo estava disponível a apenas algumas pedaladas. O mercado, a farmácia, a escola, o escritório, a praia e o metrô. Uma pequena cidade autossuficiente em muita coisa e com fácil acesso a outras vizinhanças.

Natural portanto que em meio a tantas ruas sem espaço para mais carros o morador do bairro e também os prestadores de serviço saberem que a bicicleta era a melhor solução. Para facilitar a vida de quem mora e circula pela bairro apresentamos ainda em 2008 um plano cicloviário para Copacabana. Ruas com velocidade máxima de 30km/h, número mágico que facilita a fluidez e segurança das pessoas.

Do papel a idéia ganhou as ruas em forma de plano piloto que se espalhou pela cidade. Agora a conquista se consolida e Copacabana será mais do que um exemplo piloto, mas uma implementação real de como podem ser os bairros cariocas do futuro. Afinal, o projeto piloto de anos atrás já chegou a outras regiões do Rio de Janeiro.

Simulação do BikeBox na Rua Hilário de Gouveia esquina com Nossa Senhora de Copacabana

Simulação do BikeBox na Rua Hilário de Gouveia esquina com Nossa Senhora de Copacabana

Mais do que um plano que sai do papel, as Zonas 30 de Copacabana são o símbolo máximo de respeito a circulação das pessoas. Serão consideradas parte da malha cicloviária, afinal a sinalização irá deixar claro a todos que os veículos automotores serão permitidos e cidadãos em bicicleta serão os convidados especiais. e

Rua Toneleros com Rua Anita Garibaldi

Simulação de travessia na Rua Toneleros com Rua Anita Garibaldi

Exemplo de mobilidade em bicicleta, Munique na Alemanha tem grande parte dos seus 1.700 km de infraestrutura para bicicletas como Zonas 30, assim como Viena na Austria e diversas outras cidades. As Zonas 30 são o acesso a porta das pessoas, ruas residenciais que recebem tratamento especial para garantir a mobilidade sem destruir a vizinhança.

A esperança é que Copacabana passe a ser o bairro mais completo do país quando se fala em infraestrutura ciclística e sirva de inspiração para todo o Rio de Janeiro e por consequência o Brasil.

bairro-para-ciclistas-o-globo