Da mobilização nas ruas à mudança de paradigma

Já escrevemos aqui antes condenando a pequena capacidade dos movimentos de Massa Crítica de implementar mudanças reais nas cidades. Mas no olho do furacão que passou por Porto Alegre cabe abrir uma nova porta, visualizar um lado positivo e principalmente um caminho para o futuro.

A imagem que ilustra esse post mostra o lado mais positivo. Ciclistas em Buenos Aires prestarem solidariedade aos brasileiros é indício de uma integração multilateral possível, necessária e ainda incipiente.

Por conta de um ato criminoso, classificado de tentativa de homicídio pela justiça, um único homem inspirou revolta de milhões e ações de milhares. No curto espaço desde a sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011, um fato negativo envolvendo o trânsito de bicicletas nas cidades ficou em evidência. Felizmente nenhum assunto é o mais comentado para sempre. A pauta da mobilidade em bicicleta acelerou bastante, mas é devagar e sempre que chegamos longe.

A impunidade no Brasil não se muda em dias e, principalmente, não se constrói mobilidade urbana sustentável com “arroubos de velocidade” dependentes de cobertura midiática.

Outros acontecimentos virão e seguiremos. Se nada for feito para que um “code de la rue” seja implantado, o que leva tempo e requer trabalho dedicado, terá sido apenas mais uma semana de bicicletadas e posts. Só nos resta confiar que o exercício da cidadania consiga ir além das palavras e passeatas.

Ao que tudo indica quem promove a bicicleta no Brasil tem sido capaz de se apropriar muito bem da pauta negativa para gerar debate e comoção. O maior desafio para o futuro é qualificar a discussão e promover a bicicleta de maneira positiva. Afinal, toda vez que falamos em acidentes e motoristas insandecidos corremos o risco de desincentivar uma grande massa de ciclistas em potencial a temerem a bicicleta.

Leia mais:
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Bicicleta e comunidade

Cada ciclista sabe um pouco e um ajuda o outro, simples assim. É a oficina “Mão na Roda”, que o pessoal da Ciclocidade organiza toda quinta-feira na Vila Madalena em São Paulo.

A iniciativa é uma transposição para a paulicéia do conceito norte-americano de “Bike kitchen“. Uma oficina colaborativa em que ciclistas doam seu tempo e conhecimento. Cada um traz as ferramentas que tem e aos poucos o espaço também recebe doações de instrumental e itens de uso corrente. Somando tudo chega-se a várias bicicletas sendo cuidadas, limpas, adesivadas, recebendo novos acessórios, tudo ao mesmo tempo.

Nessa quinta-feira teve visita do Edu Green, cidadão do mundo, radicado em Floripa. Ele está à frente do Caminhos do Sertão e é obcecado por luzes. Depois de uma breve apresentação sobre refletivos, luzes e dínamos, mão na roda e na graxa, com direito a cerveja gelada e bate-papo animado.

Mudar o mundo é divertido, um pedalada de cada vez e de preferência entre amigos.

Saiba mais sobre a oficina Mão na Roda.

Onde?

Espaço Contraponto, na Rua Medeiros de Albuquerque, 55 – Vila Madalena

Quando?
Toda a quinta-feira, das 18h às 22h.

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Linhas de desejo e representatividade

Rios sempre foram obstáculos naturais. Em São Paulo são a grande barreira para os meios de transporte ativos. Os rios Pinheiros e Tietê formam uma linha real que separa o centro expandido da capital do resto da mancha urbana metropolitana.

Alças de acesso que permitem velocidades altas para os motorizados e a ausência de faixas de pedestres acabam por desencorajar viagens a pé e de bicicleta nas pontes. Em algumas delas caminhar e pedalar é até proibido.

Como forma de reforçar o desejo de pedalar em segurança sobre o rio Pinheiros, ciclistas pintaram uma ciclofaixa na ponte Cidade Universitária. O fluxo de pedestres é enorme por conta da USP de um lado e da estação de trem do outro lado do rio. Some-se a isso a grande oferta de empregos de um lado e moradias do outro.

O “cicloativismo apocalíptico” exemplificado na sinalização não-oficial carrega consigo o desejo ancestral de traçar o caminho mais curto e seguir por ele. Nas palavras do filósofo Gaston Bachelard, é a linha de desejo, ou trilha social. Foi desse modo humano de viajar que se fizeram caminhos na mata, que viraram trilhas, estradas. Por onde passaram boiadas, trilhos e estradas.

Caminhos em qualquer cidade, ou espaço humano habitado, serão sempre os mais curtos e fáceis. Durante as últimas décadas esse caminho era pensado para a utilização de veículos motorizados. A demanda e ineficiência em deslocar pessoas provaram a falência desse modelo. Para mitigar o colapso, resta investir em alternativas que encoragem o uso de meios de transporte inteligentes para as inúmeras demandas humanas por ir e vir.

Leia mais:
atos de amor e coragem (pedaline)
23 de maio (apocalipse motorizado)
Desire path (wikipedia)
Subconscious Democracy and Desire (Copenhagenize)

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Massa Crítica ou Falha Crítica?

Vamos deixar uma coisa clara. Embora não sejamos ativistas que carregam faixas e apitos, achamos que o ativismo é fantástico. Damos todo nosso apoio, especialmente ao ativismo que busca criar uma cultura da bicicleta, como há em Copenhague e outras cidades do mundo.

Apenas sentimos necessidade de fazer o papel de advogado do diabo em relação ao movimento Massa Crítica (Bicicletada).

É um conceito brilhante. Democracia por princípio. Celebração, sim. Mesmo que haja apenas um par de dezenas de ciclistas. Gostaríamos de pedalar em Budapeste, com dezenas de milhares de outras bicicletas. Seria excitante. Também achamos que movimentos como a Pedalada Pelada (Naked Bike Ride) abordam questões importantes, e com humor.

Não aprovamos a repressão policial exagerada que ocorre em várias cidades, mas também não temos admiração por aqueles ciclistas que são agressivos com os motoristas. A democracia torna-se anarquia. Da mesma forma, não apreciamos a atitude elitista de muitas pessoas do movimento ambientalista. Aquelas que olham com desprezo para os motoristas.

Entendemos que o objetivo da Massa Crítica é chamar a atenção para a necessidade de uma cultura da bicicleta e todas as vantagens ambientais inerentes a isso. O que é muito bom. Portanto, um dos principais objetivos é fazer com que mais pessoas usem suas bicicletas. Por qualquer motivo: sustentabilidade, redução da dependência do petróleo, melhor saúde para seus concidadãos.

Se for assim, a Massa Crítica funciona? Não temos certeza. Passados 15 anos, existe alguma cidade que alcançou melhorias suficientes para aproximá-la da cultura da bicicleta que se vê em muitas cidades européias?

Uma Alternativa Simples

Nós sabemos que vemos uma simples alternativa. Um caminho mais fácil. E se todos aqueles ciclistas da Massa apenas pedalassem suas bicicletas todos os dias? Com roupas normais, como pessoas normais? Tal como os milhões de cidadãos dos países ao norte da Europa.

O que poderia acontecer?

Conheça nosso personagem – o Sr. Motorista. Ele dirige de casa para o trabalho e vice-versa, como sempre faz. Ouvindo a mesma estação de rádio. Mesma rota, com pequenas variações. É o que ele faz.

É um cidadão mediano numa sociedade do automóvel. Como a grande maioria, ele não é um ativista ambiental e nunca, jamais será.

Sr. Motorista olha para fora das janelas de seu carro enquanto vagarosamente se move no trânsito. O que ele pensa quando vê um ciclista radical, vestindo lycra, numa bicicleta especial, indo acelerado em seu caminho no bordo da pista?

Sr. Motorista, no tráfego da manhã, poderia pensar, “Hmm. Eu poderia ir pedalando para o trabalho, também …”

Contudo, ele não vai se ver refletido na imagem. Ele estará vendo um membro de uma sub-cultura, muitas vezes militante. Ele verá alguém que normalmente chama de “ambientalista” – um rótulo que não é positivo em muitas culturas. Ele vai ver uma pessoa vestindo um uniforme quase oficial – o Sr. Motorista não tem nada em seu armário que se assemelha aos apetrechos do ciclista – e ele verá uma bicicleta muito distante daquelas que já teve algum dia.

Ele vai perceber que, para andar de bicicleta, teria de se infiltrar em uma sub-cultura povoada por indivíduos muito diferentes dele mesmo. Teria que investir em equipamentos e roupas. Pior de tudo, ao pedalar, o Sr. Motorista veria a si mesmo levantando uma bandeira.

Sr. Motorista, como a maioria das pessoas, não quer levantar bandeiras. Ele só quer viver sua vida, não quer subir em palanques ou entrar para um grupo de ativistas ruidosos. Ele sabe que o meio-ambiente é uma questão importante. Ele conhece os fatos. Mas ele é apenas um cidadão comum e sempre será. Ele só pensa que pedalar de bicicleta para o trabalho seria agradável, saudável e mais rápido do que dirigir seu carro. Mas a idéia é rapidamente descartada.

Quando o Sr. Motorista fica preso no trânsito a caminho de casa por causa de um protesto/demonstração/celebração de bicicleta, isto não o convencerá mais facilmente a optar pela bicicleta. Ele, mais do que sempre foi, vai querer distância desta idéia. O cidadão comum não tem muito respeito por este tipo de ativismo. Gostaríamos que tivesse, mas não tem. Ele só vai ficar extremamente irritado.

Boa metáfora

Agora vamos imaginar o Sr. Motorista sentado no trânsito e olhando de relance para fora da janela. Ele Vê um sujeito passando. Uma pasta presa com elásticos no bagageiro traseiro. Vestindo um terno. Sem estar voando como se fosse quebrar recordes, apenas pedalando firme. O único equipamento é uma tira prendendo as pernas das calças e, se quiser, um capacete. Numa boa, sem desafiar o tráfego motorizado, apenas indo no fluxo. A bicicleta do homem parece aquela que está na garagem do Sr. Motorista.

Então o Sr. Motorista vê uma mulher passar por ele. Numa bicicleta confortável e charmosa. Sua pasta na cestinha, decorada com flores de plástico. A cesta, e não a pasta. Ela está usando uma saia e sapatos estilosos. Ouvindo seu iPod. Num ritmo sereno e constante.

Então, ousamos supor, o Sr. Motorista pensaria: “eu não me importaria de andar de bicicleta para o trabalho. São apenas 15 km. Esse cara se parece comigo. Mesma roupa. Mesma bicicleta. E essa mulher faz isso parecer tão fácil…”

Sr. Motorista veria a si mesmo no reflexo desses ciclistas. Ele iria perceber que, para pedalar ao trabalho, teria apenas que tirar sua bicicleta para fora da garagem, comprar uns clipes de perna e, se ele gostar, um capacete. Em muito menos tempo do que gasta para dirigir ao trabalho, ele estaria pronto para pedalar.

Ele não teria que levantar bandeiras. Ele seria apenas outro ciclista indo para o trabalho. Em harmonia. Ele sentiria como se estivesse fazendo algo de bom para si e para o planeta. Sem ter que gritar palavras de ordem para fazer isto.

Xis da questão

Aqui está o busílis. Todos aqueles que são muito entusiasmados em ajudar a aumentar o uso da bicicleta em áreas urbanas, compreendem como o cidadão comum pensa. Ajude o cidadão comum a fazer parte do grupo. Não o coloque contra a parede, destacando as diferenças entre você e ele. Estamos todos juntos nessa.

Ativistas são os primeiros da fila e todo louvor a eles, mas é o cidadão comum e seus companheiros que vão salvar o planeta no final das contas, se lhes for dada a oportunidade.

E, quando aumenta o uso da bicicleta, diminuem os acidentes com bicicleta e as cidades não terão escolha a não ser investir em infra-estrutura para bicicletas. Se você construir, elas virão.

Faça com que pedalar pareça fácil e o caminho rumo a uma cultura da bicicleta também o será.

Essa é a nossa opinião a respeito. Sinta-se livre para mandar seu comentário.

Esse texto é uma tradução de Critical Miss or Critical Mass?

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