São Paulo, uma cidade que não está para brincadeira

Foi com foguetório, pompa e circunstância que na noite de quarta-feira 27 de março de 1968, São Paulo comemorou a última viagem de bonde na cidade. Um grande cortejo de 20 veículos seguiu pelos trilhos, parte deles assentados sobre um mato baixo. Liderando a festa, junto ao primeiro motorneiro iam o prefeito, o governador e diversas autoridades, além do povo que seguia atrás e lotava os “camarões” que faziam a linha Instituto Biológico – Santo Amaro.

Teve champanhe para celebrar o progresso e discurso otimista garantindo que Santo Amaro não ficaria desassistida de transporte com a criação de novas avenidas onde antes repousavam as linhas. Na mesma página de jornal que relatou a comemoração, uma grande propaganda de um fabricante de carrocerias para ônibus. Não foi coincidência. O sucateamento do transporte sobre trilhos em São Paulo e a promoção dos ônibus à diesel e dos automóveis foi plano de décadas.


A melancolia desse post merece um samba da década de 1940: “E o 56 não veio”:

Agora, passados quase 50 anos desde o ocaso dos “veículos leves sobre trilhos” (VLTs) é quase natural condenar o retrocesso para a cidade de um plano bem elaborado e financiado de asfaltamento e abertura de vias para sua majestade o transporte sobre pneus passar. Um erro histórico sem dúvida, mas que poucos lutaram para reverter e que atendia a interesses e a uma visão de cidade muito comum e celebrada à época.


O bonde de Santo Amaro

Vivemos outros tempos, mas ainda está em disputa qual o modelo de cidade teremos nas próximas décadas. Há quem simplesmente defenda o status quo e os privilégios da mobilidade individual motorizada sobre pneus e também quem defenda a supremacia das pessoas sobre os motores. O progresso industrial e sua ética de expansão das máquinas como valores supremos transformaram as cidades e seus espaços públicos de circulação em uma grande massa asfáltica.

Mudou tanto a visão sobre transporte que o senso comum ainda acredita que só existe mobilidade sobre ruas e avenidas de uso exclusivo para motorizados ou nos subterrâneos do metrô. Dentro dessa lógica, qualquer forma de se locomover que se baseie no esforço humano é subversiva. A alegria, simplicidade e o prazer quase infantil de pedalar são uma afronta contra um mundo movido a óleo e que parece pulsar através de engrenagens.

São Paulo parou de brincar em nome daquele progresso tão bem planejado e promovido desde o século XX. Um progresso filho do planejamento e da engenharia de tráfego automotivo que no fim das contas fez a cidade locomover-se mais devagar do que nos tempos dos bondes puxados a burros.

Felizmente há sempre caminhos a serem construídos, ou desbravados. Acreditamos (e somos muitos) que a bicicleta em São Paulo e em todas as cidades do mundo é uma grande indutora de mudanças. É o veículo perfeito para a transição de um modelo de cidade que se assenta sobre o petróleo do asfalto enquanto queima os óleos do ouro negro simplesmente para mover pessoas em pesadas carcaças motorizadas.

O futuro já chegou e veio pedalando uma simples bicicleta. Trouxe na bagagem uma urbe pensada para pessoas, onde o mais importante não é como, mas quem se desloca. Por meio das deliciosas e tão antigas magrelas que irá ser repavimentado um legado de futuro urbano.

Quando uma bicicleta ganha as ruas, surgem necessidades que estavam esquecidas, a maior delas é que na condução estará sempre uma frágil vida humana. Ao se multiplicarem os pedalantes, fica exposto ao mesmo tempo nossos graves problemas urbanos e a solução. Cada ciclista na rua deixa claro que o modelo de urbanismo do século XX nos trouxe à beira do fracasso urbano, mas esse mesmo ciclista lembra a todos que basta despir-se das carcaças de aço e recriar uma nova cidade que já é possível hoje.

Essa é Utrecht em uma manhã de uma quarta-feira qualquer. Uma cidade de cerca de 300 mil habitantes, parte da grande conurbação holandesa de Randstad com quase 7 milhões de pessoas.

Nós não somos holandeses, não somos dinamarqueses e nenhuma cidade se compara a qualquer outra. Mas o fato é que o paraíso ciclístico com VLT que se vê no vídeo nasceu de uma premissa central, era preciso priorizar o deslocamento das pessoas. Primeiro com a retomada dos espaços públicos de circulação e permanência, aos poucos com todas as transformações advindas dessa premissa.

Pedalemos!

Textos de referência:

A morte do bonde – Revista História Viva
Foram-se os bondes – O Estado de S. Paulo de 28 de Março de 1968 – pág. 19
Brincando de ciclovias – Editorial O Estado de S. Paulo
Nós não somos dinamarqueses – Sustentável é pouco
Em busca do urbanismo perdido – Aliás – OESP
O último bonde em Santo Amaro e São Paulo
Santo Amaro: eixo histórico dos transportes, trem, bonde e metrô, no mesmo itinerário – São Paulo, minha cidade

Uma cidade sem alternativas

Os metroviários de São Paulo estão em greve, uma categoria de trabalhadores em uma queda de braço contra o estado de São Paulo. A batalha se trava pela força, por métodos tradicionais de empregados versus patrões.

Como em todo momento de crise, a cidade mostra suas debilidades estruturais e as pessoas buscam alternativas ou sofrem em opções já conhecidas. A narrativa da cidade gira em torno de um mesmo tema, o tempo gasto de casa ao trabalho. Horas para percorrer poucos quilômetros, muito aperto nos ônibus e nas longas distâncias dos trens de subúrbio.

Olhares atentos permitem ver mais pessoas caminhando distancias maiores e ciclistas que descobrem os prazeres e a praticidade de pedalar ao trabalho. As greves passam, a cidade segue. Mas a cada crise, é hora de repensar a cidade construída e a cidade sonhada.

Sonho possível é o da cidade plural em que transportes se integram para cumprir a função de permitir que pessoas possam ir e voltar de seus destinos. Seja qual for o motivo.

Muito se fala nas horas de pico, na cidade que vai e volta do trabalho, mas existem outras. Existe o espaço do lazer na cidade, a possibilidade de distâncias menores entre onde se ganha o pão e onde se dorme.

Nas ruas e avenidas da cidade seguirão sendo feitas as reivindicações políticas por melhores salários e condições de trabalho de quem garante o funcionamento do transporte público. Uma batalha de forças que precisa ser feita com o propósito final de garantir dignidade ao trabalhador e também a quem é transportado. A cidade afinal é ambiente de trocas e as desigualdades econômicas ainda são o maior drama urbano brasileiro.

Drama quase invisível. Afinal o discurso corrente do senso comum que repensa a mobilidade é de “atrair o motorista do carro particular para o transporte público”. Um caminho que, na realidade brasileira, demonstra claramente nosso sistema de castas. Incentivos para quem opta pela mobilidade individual motorizada parece ser um propósito mais importante do que garantir boas alternativas de deslocamento além proximidade de moradia, trabalho e lazer. Aspectos fundamentais para definir os rumos urbanos para o futuro e que passam mais pela promoção de incentivos corretos do que pela garantia de privilégios a quem tem condições socioeconômicas privilegiadas.

A “meritocracia” de comprar a própria mobilidade através da carruagem própria se mostrou um fracasso em todos o mundo. Soluções em construção tem sido coletivas e promotoras da diversidade e pluralidade urbanas. Cidades pensadas para as pessoas e nas quais mover-se é um direito, não um privilégio. Esses espaços urbanos tem por princípio tratar a todos como cidadãos de direitos, em uma trajetória sempre cheia de ajustes.

A eficiência do transporte público

Em pleno século XXI ainda pode causar surpresa a constatação de que o transporte público (e as bicicletas) são uma maneira bem mais lógica e racional de utilizar o espaço limitado das ruas.

A galeria mostra alguns exemplos e o vídeo abaixo descreve em imagens em movimento a importância de garantir que o transporte público possa ter espaço para fluir livremente e transportar muito mais gente através de grandes distâncias.

E para quem prefere o transporte individual, a bicicleta é a solução perfeita por ocupar menos espaço para circular e também estacionar.

Aos interessados em saber a importância de privilegiar o transporte público nas ruas da cidade, vale a leitura do texto de Eduardo Vasconcellos.

Cidades precisam de escala humana

Calçada sufocante em São Paulo

Calçada sufocante em São Paulo

Cidades são organismos vivos e felizmente sempre em mutação. Quem vive a rede urbana através do transporte público, o de transporte ativos, descobre em suas caminhadas e pedaladas que muitas vezes o ser humano parece ser um convidado trapalhão em um ambiente de amplitude e linhas retas para a circulação viária de motorizados.

A engenharia de trânsito, aquela que planeja a cidade para fluxos motorizados, nos leva a crer que a fluidez é uma entidade a ser preservada acima de todas as outras necessidades urbanas.

Dentro dessa lógica pode parecer natural organizar fluxos, sinalizar prioridades e comunicar com placas e sinalizações horizontais os caminhos e descaminhos a serem tomados por pedestres e veículos. Mas essa forma de ação ainda é insuficiente para quebrar a percepção de que o mais importante no ambiente urbano é a escala humana.

Triciclo de carga transporta criança de maneira improvisada enquanto trafega na calçada

Triciclo de carga transporta criança de maneira improvisada enquanto trafega na calçada

Talvez a foto acima explique de maneira precisa o significado de escala humana, ou da sua inadequação nas ruas do Rio de Janeiro a necessidade de locomoção das pessoas. Ir e vir é necessidade para todos e as cidades quanto mais orientadas para o fluxo motorizado, mais inviáveis tornam-se para o próprio fluxo em si. Com isso geram conflitos e desconfortos a todos.

Placas e sinalizações irão ajudar no longo caminho de reverter a noção cultural de que a prioridade urbana é fazer fluir entes motorizados. A prioridade precisa voltar a ser os deslocamentos de pessoas e com essa lógica em mente, todo o resto se reorganiza.

A escala humana nas cidade joga luz sobre a necessidade de mais densidade de espaços de moradia, lazer e trabalho. Traz consigo a necessidade de deslocamentos mais curtos para facilitar caminhadas e pedaladas e tirar a pressão sobre o deslocamento de pessoas através de grandes distâncias. O que pressiona com lotação dos transportes públicos e congestionamentos dos motorizados na infraestrutura viária.

Há um longo caminho para chegarmos à cidades em escala humana. Mas esse caminho já foi iniciado e as cidades que pretendem sobreviver as pressões de um futuro cada vez mais urbanizado precisam trabalhar para garantir que haja variedade de opções e repertório de uso das ruas. O que só é possível quando as necessidades humanas são colocadas acima das fluidez motorizada, tornando os veículos automotores convidados trapalhões dentro da cidade.

Sinalização horizontal para bicicleta em São Paulo

Sinalização horizontal para bicicleta em São Paulo

Democracia que se faz nas ruas

Os aumentos nas passagens do transporte público foram o estopim de uma revolta popular ainda indefinida. Muito ainda está em curso através das redes sociais e agora também nas ruas das cidades brasileiras.

Qualquer pessoa que dê valor a democracia tem o dever de tomar as ruas, o dever de dizer que o direito mais sagrado é sair em praça publica e fazer política.

No começo da onda de protestos em São Paulo o senso comum propalado pelos grandes meios de comunicação é do direito à circulação motorizada, e os congestionamentos, ou “trânsito”, causado pelas manifestações. A simbólica avenida Paulista foi liberada a custas de muitas bombas de gás de pimenta na quinta feira 13 de junho. As imagens dos abusos policiais causaram indignação e trouxeram centenas de milhares (milhões) às ruas. Ainda pela revogação do aumento das passagens, e por consequência pelo direito às cidades. Mas outras pautas surgiram.

E como bem definiu Leonardo Sakamoto, as pessoas saíram das redes sociais e tomaram as ruas. Daí surgiram problemas inerentes a presença de massas heterogêneas no espaço público das ruas.

O que aconteceu em São Paulo no dia 17 de junho de 2013 foi talvez a maior reocupação urbana da cidade de todos os tempos. Fez a cidade parar de medir congestionamentos de automóveis e passou a discutir política em todos os cantos.

Houve uma mudança sutil, mas fundamental, a experiência de tantos que caminharam em avenidas que só tinham gente em plena hora do rush. Essa vivência certamente impactou quem estava nas ruas e pode ouvir outros sons, olhar o espaço ao redor e ver como é uma cidade com o fluxo humano. Apesar dos gritos dos manifestantes, a cidade ficou mais agradável e, quem diria, silenciosa.

As imagens das massas nas maiores cidades do país impressionaram e as ruas ainda seguem tomadas regularmente. Parece que o brasileiro redescobriu a beleza do espaço público. Com a vitória contra o aumento das passagens, agora a pauta pelo direito às cidades se diluiu.

Agora que os gritos das marchas do movimento passe livre cederam espaço para o hino nacional e gritos de torcida, aqueles que estão na rua aparentemente perderam o rumo da caminhada.

O caminho para a democracia e o aprendizado de como se fazer política no espaço público é longo. O direito às cidades ainda não está garantido, mas nesse momento o brasileiro parece apaixonado pela sua força e vontade de mudar o país.

 

 

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