Uma excelente crônica de Zuenir Ventura no Jornal O Globo faz um convite a reflexão sobre nossas cidades e a maneira que nos deslocamos nelas.
PRIMEIRO CADERNO – 08/09/2007
A ditadura das quatro rodas
Outro dia, dois amigos vieram andando a pé, à noite, da altura do Posto 4, em Copacabana, até o Posto 9, em Ipanema. Percorreram uns quatro ou cinco quilômetros conversando, olhando a paisagem, sem cansaço e sem medo. Só fizeram isso porque não são daqui, são de Porto Alegre. O carioca já foi definido como o ser urbano que pega o carro, anda uns mil metros, demora a estacionar, desce e então caminha dois, três quilômetros no calçadão. Não lhe passa pela cabeça aproveitar o trajeto de sua casa até a praia para se exercitar. Não que ele seja sedentário ou ocioso; até que se agita muito, é aerobiótico.
Basta observá-lo numa manhã de sol ao ar livre, mexendo braços e pernas, fazendo exercícios, correndo.
O que ele não sabe mais é flanar, um verbo que, se não foi inventado pelos franceses, é certamente sua especialidade. O que é flanar? Pergunta João do Rio, nosso cronista maior do início do século passado e um grande “flaneur” pela “alma encantadora das ruas”. Ele mesmo responde: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é perambular com inteligência, é ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite”. Sei que há várias alegações para não se fazer mais isso, como a insegurança da cidade. Mas o verdadeiro vilão é o automóvel, com toda a cultura que o acompanha e que dela nos faz dependentes: o culto da velocidade, a obsessão de ultrapassar, a pressa de chegar. O engraçado é que no dia-a-dia cada vez mais se obtém o efeito contrário: a lentidão dos engarrafamentos, a demora, o estresse.Sem falar que os acidentes transformaram o automóvel num dos principais instrumentos de morte nas grandes cidades brasileiras.
Por isso é que uma notícia como a dessa semana deveria acender um sinal vermelho junto ao governo. Se o Rio ganha 5.500 carros novos por mês, se há um automóvel para cada três habitantes, se a nossa frota já é de 2 milhões de veículos e se nada se faz para compensar essa explosão _ nem novas vias, nem medidas de ordenação do caos _ pode-se prever o que nos espera para breve. São Paulo instituiu o rodízio, outras cidades investiram em transporte público e criaram o pedágio urbano, Paris, Amsterdam, Barcelona, Bogotá, entre outras, adotaram a bicicleta como solução alternativa. O Rio parece que se rendeu mesmo à ditadura das quatro rodas.
Existe uma idéia, bem radical, que tem muitos adeptos, inclusive o ex-prefeito Luiz Paulo Conde, que
chegou a lançá-la, mas não a levou adiante: implodir o viaduto sobre a Praça 15. Isso mesmo. Bum! E
assim comemoraríamos os 200 anos da chegada da família real ao Brasil. A medida de saneamento urbano não só devolveria à cidade um de seus espaços mais bonitos, como seria o marco simbólico de uma nova era. Serviria para mostrar ao mundo que no Rio, daqui pra frente, o pedestre vale mais do que o automóvel
Há que se discordar do nobre cronista acerca da “rendição” do Rio de Janeiro. Cada vez mais ciclistas tomam as ruas e aos poucos a cidade caminha também para a humanização dos espaço público, basta procurar os exemplos.
- Mais:
Calçadas e Democracia
A Liberdade da Propulsão Humana