Bicicleta, veículo de transformação urbana

O grande diferencial da bicicleta como meio de transporte urbano reside justamente no fato da bicicleta ser um veículo. Na lógica do planejamento urbano consolidado ao longo do século XX a prioridade aos poucos foi sendo reconstruída para comportar a circulação de veículos motorizados.

Reverter uma lógica presa à circulação veicular motorizada é um trabalho árduo e que requer diversas frentes. Talvez a melhor delas seja a bicicleta e a razão é bastante simples. Veículo movido pela força humana, uma bicicleta é uma versão mais eficiente de um pedestre. Apesar de mais veloz e com menor gasto energético, continua dentro da lógica humana, dada a fragilidade do conjunto ciclista+máquina.

A subversão da lógica urbana através da bicicleta nem sempre é entendida por aquele sujeito chamado de “Senso Comum”. Quando uma massa de ciclistas toma uma grande avenida, erroneamente julga-se que o trânsito foi impedido. Na realidade o que ocorre é um movimento cidadão de retomada do espaço de circulação viário que normalmente tem uso único. Em lugar do trânsito motorizado cotidiano, circula uma massa uniforme de pessoas em bicicletas, essa ocupação convencionou-se chamar de Massa Crítica, ou Bicicletada.

A Massa Crítica de São Francisco foi criada em 1992 e é filha da mesma ideologia dos movimentos anteriores de contestação do status quo. E aí reside a limitação de movimentos dessa natureza, costumam esvaziar-se com o tempo e em geral tem tendência autocentrada, nem sempre capazes de influenciar as mudanças sociais a que se propõem. O texto “Massa Crítica ou Falha Crítica” escrito por Mikael Colville-Andersen, e traduzido por nós, aprofunda o tema.

Inserida pela sutileza de ocupar pouco espaço e ser mais veloz que qualquer veículo motorizado nas cidades, a bicicleta também se insere pela força daqueles que de maneira anárquica celebram a rua como espaço público para comemoração, protesto e circulação, tudo ao mesmo tempo.

Grandes avenidas tomadas por bicicletas à perder de vista são sempre um espetáculo para os olhos e a alma. Revigora e possibilita sonhar com cidades melhores, e as pessoas que compõem essa massa sem líderes certamente querem transformar a utopia em realidade. Há no entanto um problema a ser equacionado para que os “cicloativistas” tornem-se efetivamente agentes da transformação urbana.

O valor de todo “movimento cicloativista” é principalmente de unir pessoas, fortalecer os vínculos humanos de uma minoria engajada em favor da bicicleta. Esse valor será ainda maior quanto menos reativa for a postura dos que defedem a bicicleta. Não basta protestar quando ciclistas são mortos no trânsito, tirar a roupa e sair pedalando chama a atenção da mídia, mas não muda a paisagem urbana. Cada “cicloativista” tem que ter uma postura de defensor do uso da bicicleta ser especialista em mobilidade urbana. Ter um discurso que seja apreendido e levado a sério por planejadores urbanos, técnicos nas prefeituras, jornalistas e a sociedade como um todo.

A inserção da bicicleta nas cidades é o primeiro ato, as pedaladas seguintes são as mais complexas, requerem menos festa e um esforço constante, articulação política e pressão na medida certa. Ao invés de reclamar com os jornais por matérias erradas e pela lentidão do poder público, é preciso pautar a imprensa e aliar-se ao poder público, sem ser cooptado. A rebeldia adolescente do “cicloativismo” tem o potencial de amadurecer e, com isto, mudar o espaço urbano. E tudo sem perder a alegria do vento no rosto e o sorriso aberto que faz lembrar as primeiras pedaladas na infância.

Para repensar a linguagem

O uso corrente de diversos termos no que se refere à mobilidade urbana são baseados no vocabulário da engenharia de tráfego dos 1950, 1960. Repesensar os significados das palavras é um caminho fundamental para mudar o entendimento sobre a forma e função da cidade. De maneira brilhante a cidade norte-americana de West Palm Beach na Flórida produziu um documento dirigido aos técnicos da área de trânsito para que pudessem substituir palavras tendeciosas relativas à investimentos e políticas públicas de trânsito.

A diretiva é bastante clara, já na definição do que é tráfego:

A palavra tráfego é corriqueiramente usada como sinônimo de tráfego de veículos motorizados. Existem no entanto diversos tipos de tráfego nas cidades: tráfego de pedestres, tráfego de bicicletas, tráfego de trens. Para garantir a objetividade, se você quer dizer tráfego de veículos motorizados, então diga tráfego de veículos motorizados. Caso esteja se referindo a todo tipo de tráfego, então diga tráfego.

Outro termo empregado de forma errada e que tem definição mais precisa é em relação ao uso da palavra acidente:

Acidentes são eventos danosos em que algo acontece por um azar inesperado ou por acaso. Acidentes implicam na ausência de culpados. É amplamente sabido que a grande maioria dos acidentes (de trânsito motorizado) são previniveis e além de ser possível apontar culpados. O uso da palavra acidente também reduz o grau de responsabilidade e da gravidade associada à situação e invoca um certo grau de simpatia à pessoa responsável. A linguagem objetiva inclui os termos colisão e batida.

Por conta dessa visão, que após o atropelamento dos ciclistas de Porto Alegre em fevereiro de 2011 durante a bicicletada, o termo #naofoiacidente foi um dos mais comentados no twitter. A situação se repetiu na última sexta-feira, 02 de março, quando mais uma ciclista foi morta por um ônibus na avenida Paulista e também em outras cidades brasileiras. O tema foi gancho para um debate ao vivo com Zé Lobo, presidente da Transporte Ativo, e o jornalista ambiental André Trigueiro, assista.

O manual de West Palm Beach ainda trata de diversos outros termos, alguns mais, outros menos simples de serem traduzidos para a realidade brasileira. Em português por exemplo a maior distorção do planejamento viário tupiniquim é o uso do termo “não-motorizado” para tratar de pedestres, ciclistas e outros meios de transporte ativos. Assunto já tratado em um outro post (Transporte não-motorizado).

Exemplos a serem resignificados existem em abundância. Quando uma via fica restrita à circulação de veículos motorizados a comunicação oficial é de que a via foi “fechada”, quando o correto seria dizer justamente o contrário, que a via foi aberta exclusivamente para o tráfego de pessoas.

Repensar o discurso e o uso das palavras é um primeiro passo fundamental para ordenar prioridades e atualizar o planejamento urbano. Afinal, nada mais antiquado do que usar gírias de meados do século XX em pleno século XXI e de certa forma é isso que temos aceitado fazer no que se refere à mobilidade urbana.

A publicação original do manual da prefeitura de West Palm Beach está disponível em pdf. Mais informações no blog Human Transit. O blog “Vá de Bike”, também traz sua visão sobre porque “acidente” não descreve os atropelamentos de ciclistas.

Bicicleta e participação cidadã

O prazer de pedalar gera efeitos colaterais, o principal deles é a vontade de pedalar mais e disseminar o hábito entre amigos, conhecidos e até desconhecidos. Condições adversas de circulação para a bicicleta acabam inclusive por reforçar a união entre ciclistas. Quem pedala acaba por buscar transformar problema em pressão para a resolução.

Um excelente exemplo da união dos ciclistas em prol de uma solução propositiva aconteceu em São Paulo. Acessar o sistema de trens metropolitanos e o metrô é permitido em São Paulo em determinados horários, mas o ciclista deveria subir e descer escadas carregando a própria bicicleta. Esse pequeno detalhe operacional era um grande desincentivo para a integração modal da bicicleta com o transporte sobre trilhos. Mas as perguntas certas e um vídeo bem produzido foram capazes de reverter a situação em favor dos ciclistas.

Por conta do vídeo acima e sua repercussão, os operadores do sistema (CPTM e Metrô) passaram a permitir que os ciclistas utilizem as escadas rolantes, mas somente para subir. Um passo importante para que os técnicos das empresas entendam a dinâmica de circulação e para que os ciclistas ajudem a comprovar que bicicleta na escada rolante é seguro e não atrapalha os demais passageiros.

Pedalemos pois. Para mais informações e detalhes visite o Vá de Bike, Na Bike e a Cicloliga.

Educação Vs. Transporte

O Brasil vive um momento privilegiado em sua história, com o crescimento econômico dos últimos anos já somos a sexta economia mundial, o PIB brasileiro tornou-se maior do que a Inglaterra. As desigualdades entre os muito pobres e os muito ricos diminuiram. Tudo aponta para um horizonte de otimismo para nos tornarmos um país com uma classe média importante e principalmente consumidora de produtos nacionais e estrangeiros.

Apesar do otimismo, é preciso analizar com atenção um detalhe fundamental sobre a inflação e os indicadores econômicos no Brasil. A nova “Pesquisa de Orçamentos Familiares” do IBGE irá mudar o cálculo da inflação. Como bem destacou o Jornal O Globo, a inflação e o carro zero quilômetro já pesam mais no orçamento das famílias do que os gastos com educação.

O dado aponta para um reflexo perverso da falta de investimentos em transporte público e na mobilidade em bicicleta. O brasileiro que se sente obrigado a fugir para a educação privada, para os planos de saúde e para mobilidade particular compromete grande parte de sua renda com serviços que deveriam ser garantidos pelo Estado. E segundo o IBGE agora passa a gasta mais para se locomover nos grandes centros urbanos Brasil afora do que para estudar os filhos.

Mas existe um horizonte possível que o IBGE ainda não descobriu e que precisa crescer e ser estimulado, uma certa elite que opta por não ter o veículo motorizado próprio em prol de investimentos na educação de si mesmo e dos filhos. Optar pela bicicleta e pelo transporte público é acima de tudo uma decisão inteligente e necessária.

A Lei da Mobilidade Urbana

A recém promulgada lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, aponta novas caminhos para equacionar o drama urbano da (i)mobilidade. As diretrizes da nova lei preveem integração entre “a política de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo” (art. 6, ítem I). O texto segue em linha gerais estabelecendo prioridade para o transporte público, dos meios de transporte “não-motorizados” e dando incentivos a melhorias em prol da sustentabilidade.

Dentre as principais medidas da nova lei, fica assegurada a participação da sociedade civil no planejamento, fiscalização e avaliação da mobilidade urbana (art. 15) e o código de defesa do consumidor passa a valer para os usuários do transporte público (art. 14). Mas o mais importante é os municípios com mais de 20 mil habitantes terão prazo de 3 anos para elaborarem um Plano de Mobilidade, antes ele só era obrigatório para os 38 municipíos brasileiros com mais de 500 mil habitantens.

Segundo análise do IPEA, (Nova lei moderniza regulação da mobilidade urbana) a primeira constatação é que a nova lei oficializa o que já estava definido na “Política Nacional da Mobilidade Urbana Sustentável“, formulada pelo Ministério das Cidades em 2004. Ou seja, o que já estava redigido pelo Ministério passa a ter força de lei federal, mas na prática o caminho ainda é longo para que as medidas previstas sejam colocadas em prática.

Além do texto um tanto quanto amplo demais, o principal deslize do novo plano é insistir na definição de modos de transporte ativos como “não motorizados“. A questão é mais do que sintática, pedestres cadeirantes, ciclistas, skatistas, patinadores são definidos em função do meio de transporte principal nas cidades, os motorizados e isso ainda não mudou com a nova lei. O texto “Transporte Não Motorizado“, alonga-se sobre a questão.

Para quem quiser saber mais sobre a importância de Planos de Mobilidade, a Autoridade Européia de Transporte Metropolitano tem um documento valioso em inglês: “Mobility Plans: the way forward for a sustainable urban mobility“.

Para que a legislação tenha valor, agora é preciso que haja pressão local nos milhares de municípios que passam a ser obrigados a ter um plano de mobilidade. Antes apenas as cidades com mais de 500 mil habitantes eram obrigadas a elaborar um plano e ainda hoje nem todas as 38 cidades que se encaixam nesse perfil Brasil afora foram capazes de elaborar seus planos de mobilidade.