As cidades, ao redor do mundo, precisam da bicicleta. Isso é fato e felizmente muitos prefeitos começam a ver isso e tomam medidas que garantem cada vez mais o conforto e segurança de quem opta por pedalar nas cidades.
Para que a população esteja pronta para adotar a bicicleta, é preciso conquistar corações e mentes e é disso que trata a promoção ao uso da bicicleta. Uma tarefa árdua sem dúvida, mas que lida diretamente com as estruturas de poder da “sociedade do automóvel”, ou “motorcracia”. Ou simplesmente a maneira como nossas cidades foram modificadas ao longo do século XX para se adequarem ao fluxo de veículos motorizados em detrimento de todas as demais necessidades.
Já estamos em outro milênio e ainda é comum pensar que o fluxo de veículos motorizado é o único uso possível das ruas, quando na verdade as ruas existem para comportar o fluxo e permanência das pessoas, independente do meio de transporte.
Justamente esse entendimento míope das ruas é o que contamina os corações e mentes da população urbana. Sejam pedestres, ciclistas e motoristas. Essa linha de pensamento aceita que os mais frágeis devem utilizar armaduras e se defender contra o fluxo motorizado em alta velocidade.
Dentro da defesa do status quo, estão também os próprios ciclistas, em especial os “ciclocapacetistas”, aqueles que defendem com fé cega o uso do capacete e dos equipamentos de segurança acima de todas as coisas.
Defendem o capacete para justificar um fato que não é natural; pelo contrário, poderia muito bem ser evitado. É um fato cultural. Usam argumentos do medo e da segurança para manter uma situação isto é: “eu uso capacete e consegui sobreviver à guerra do trânsito”.
Vale questionar a própria necessidade dessa “guerra no trânsito”. É possível fazer um paralelo entre o “ciclocapacetistas” que “quebrou o capacete em mil partes” e um soldado que volta vivo da guerra e diz que conseguiu sobreviver porque o estilhaço da bomba pegou no capacete.
Antes de discutir a necessidade do capacete para soldado, precisamos discutir se é preciso haver guerra. Neste sentido, quem defende com unhas e dentes o uso de capacete de alguma forma está querendo se “adaptar” à situação, e não está querendo mudá-la. “É um fato triste ter guerra, mas elas existem e os soldados precisam de capacete.”
Muito pelo contrário, ciclistas não são soldados que devem se “proteger a todo custo” dos “inimigos”. É preciso acima de tudo ter o entendimento que o uso que se faz hoje das ruas das nossas cidades é uma distorção e que essa distorção só irá ser revertida quando houver o entendimento de que acima de tudo é preciso promover o uso da bicicleta com conforto e segurança.
As medidas para isso já estão no papel e em diversos estudos. É o planejamento cicloviário que:
- legitima o uso que os ciclistas fazem das ruas, como atores legítimos no trânsito,
- coíbe o excesso de velocidade por parte dos veículos motorizados
- aumenta as zonas compartilhadas com limite de velocidade de até 30 km/h
- constrói ciclovias segregadas em vias de grande fluxo motorizado
- distribui bicicletários em espaços públicos e privados.
Mas o planejamento cicloviário para ser bem implementado precisa do devido apoio da população e é esse o papel da promoção ao uso da bicicleta.
Promover o uso da bicicleta é simplesmente entender o potencial das bicicletas para as pessoas e as cidades e transmitir de maneira clara esses benefícios para a população. Mas para isso é preciso quebrar os preconceitos e as idéias construídas pela “motorcracia”.
Lá no começo do século XX, vivemos “a transição da época em que os motoristas eram considerados responsáveis por todo atropelamento e em que era impensável pensar em culpar uma criança (ou seus pais) por ser morta ao brincar ou atravessar distraída uma rua, ao momento em que se tornou aceitável limitar a presença de pedestres em faixas específicas. (1)”
É preciso viver a transição oposta, ser a favor da bicicleta e entender que o ciclista não é nem pedestre nem motorista e por isso tem outras necessidades e motivações nos seus deslocamentos. Defender os desejos dos ciclistas implica ser a favor da readequação das cidades em favor das pessoas e não na adequação das pessoas às cidades.
(1) – trecho retirado da resenha do livro Fighting Traffic.
Se a grande maioria dos motoristas fossem responsáveis e respeitassem mesmo o próximo, talvez nem precisaríamos de ciclovias ou ciclofaixas, pois todos poderiam viver em harmonia.
Infelizmente isso seria uma utopia… por isso é preciso investir em estrutura cicloviária e educação para motoristas e ciclistas. E se quem está lendo é motorista e não concorda com o uso da bike, pense um pouco: fora do seu carro, vc vira um pedestre, um ser tão vulnerável quanto os demais que pedalam, usam o ônibus ou simplesmente vão a pé para seus compromissos. Todos são pessoas.
ps: conheço um poucos dos dois lados, tenho CNH faz 13 anos e pedalo desde os 13.
você, Netto, encorre na falácia mentalista/conscientista.
A consicência não existe senão acidentalmente, e em nada modela o comportamento – antes, é subproduto dele.
O que moda o comportamento? Comportamentos, oras!
E aí, a questão é a maldição do verbo “ser”: ninguém É motorista, ou É ciclista – mas dirige-se, pedala-se, anda-se a pé.
O que garante melhores motoristas é que eles sejam usuários de outros entes do sistema além do carro individual privado; idem para usuários de bicicleta, pedestres, etc. A questão é ampliar o cardápio e o léxico, o repertório.
Ciclovias segregadas serão sempre necessárias, por mais diversidade de léxico a população tenha, porque a partir de dada demanda, largura de via e velocidade permitida, a capacidade de percepção e reação despenca – e nestas situações, segregar é inevitável.
O que há é que se deve buscar ao máximo soluções de desenho universal, que evitem segregação não apenas em relação a bicicleta, mas também aos pedestres: abolir, por exemplo, as calçadas – franqueando de ponta a ponta o espaço para pedestres, com o carro passando por ali lentamente como convidado. Europeu, isso?! Bem, em Salvador acontece no Largo Dois de Julho há mais de dez anos, numa reforma de uma prefeitura de direita, e numa região que não é exatamente rica (embora seja sim muito culta, intelectualizada e ligada a produção artística).
Falo tudo isso como alguém que preside uma associação de Psicólogos do Trânsito – e é por ser psicólogo que eu sei bem que a mente não existe como causa, e sim apenas como sub-produto do comportamento e do ambiente em que o comportamento se elicia.
Textos irretocáveis, srs. Lacerda e Portela!