O trânsito é excelente fonte de boas pesquisas para entender um povo. Há no comportamento de condutores, passageiros e pedestres um retrato fiel da natureza dos comportamentos sociais de uma cidade e um país. Infelizmente esse fenômeno, talvez por demais fluído, seja pouco estudado.
É possível conhecer uma etnografia das estradas através dos impactos de sua construção, reforma ou ampliação, mas está por ser feito um estudo sobre os comportamentos dos usuários desses espaços e a maneira com que se apropriam dos caminhos. Um observador atento pode, no entanto, reparar em algumas pistas sobre como se dão as interações e como se mede a hierarquia de forças.
Fosse um fenômeno pouco comum, a “tomada da faixa da esquerda” em rodovias talvez passasse desapercebida, mas trata-se de um comportamento consistente com uma certa ética de comportamento do condutor brasileiro. O “desejo de potência” é tão forte que se manifesta pela defesa aguerrida do direito de não ser ultrapassado, ou de querer ultrapassar a todos. Tal comportamento tem menos a ver com o tamanho do motor da máquina e mais com um certo desejo de quem a guia.
Máquina e gente fundem-se, a identidade humana fica transferida para as quatro rodas movida à motor. Chega a ser quase inadmissível abrir mão da pista de ultrapassagem, sinal de fraqueza ou de admissão da própria impotência. Na corrida das vaidades dos que pagaram à vista ou parcelado o direito de uso da rodovia através de um automóvel sobrevive apenas o sonho de exercer o pleno potencial do produto adquirido.
Com a inevitável frustração que a realidade propicia à todos, condutores tornam-se ainda mais agressivos e buscam a velocidade a qualquer preço mirando um certo nirvana inalcançável promovida na publicidade. Nos congestionamentos nas rodovias esse escape pode ser extravasado no acostamento ou em ultrapassagens pela direita. Seja qual for a conduta escolhida, o risco acelera na mesma medida e ajuda a evaporar o bom senso e atropelar as quase sempre desconhecidas normas de trânsito.
Os usuários mais frágeis nas rodovias
A lógica rodoviarista de expansão dos povoamentos ao redor das estradas traz também para além dos comportamentos de condutores, elementos externos às rodovias. Mais invisíveis do que dentro das cidades, pedestres e ciclistas praticamente tornam-se apenas borrões na paisagem. O tratamento dado a quem deveria ser protegido vai da tolerância ao uso dos acostamentos, até placas de proibição sem que sejam dadas condições de circulação. Passam ainda pelos alertas de pontos de travessia, feitos por conta e risco dos pedestres. Além é claro das sempre longínquas passarelas.
Justamente no tratamento concedido por quem construiu e por quem opera as rodovias fica clara mais uma vez a conduta social aceitável quanto aos elementos mais vulneráveis. Comportamento que se replica de diversas maneiras, sempre tendo nos elementos mais frágeis um certo “estorvo social”. Sejam os ciclistas e pedestres das comunidades cortadas por rodovias, cicloturistas, peregrinos ou atletas em treinamento. São tratados como problema ou pior, vítimas a serem responsabilizadas em caso de irresponsabilidade ou imprudência dos condutores de motorizados.
Desafio civilizatório das estradas
Com cidades repletas de vias expressas, condutas de trânsito urbano são transplantadas para viagens de longa duração, o egoísmo de ser o primeiro até o próximo semáforo se multiplica por centenas de quilômetros e a ética, ou falta dela, que contaminou as condutas nos espaços de circulação urbana se agiganta nas rodovias.
Nas cidades é possível e desejável falar em humanização dos espaços de circulação, com ruas e avenidas capazes de se adequarem ao compartilhamento entre diferentes meios de locomoção. Já nas estradas o desafio vai além da inserção e adequação aos mais vulneráveis, passa por rever condutas ainda mais amplas da sociedade que construiu e ampliou estradas e rodovias para que fosse possível desfrutar da velocidade movida à combustão e pavimentada com muito asfalto.
Humanizar cidades tem portanto um papel respeitável no combate a agressividade e mortalidade das estradas. Mas o desafio vai além, passa principalmente pela separação entre pessoa e veículo. É preciso deixar claro que os sonhos e potências promovidas pela publicidade automobilística são metas impossíveis de felicidade individualista, que se traduzem em riscos e irresponsabilidade cotidianas.
Por fim, a promoção da civilidade como valor e o respeito às minorias como preceito democrático fundamental são aprendizados futuros possíveis através de um estudo do que representam as condutas dentro e ao redor das rodovias e estradas brasileiras.
Outras leituras:
- “Guerra nas estradas: na berma da antropologia”
- Roads and Anthropology – Ethnography, Infrastructures, (Im)mobility
- Landscapes of Movement – Trails, Paths, and Roads in Anthropological Perspective