Do que depende a sobrevivência das cidades

Repensar a cidade através da escala humana passa necessariamente por conhecer um pouco da vida e obra de Jane Jacobs, referência mundial da luta pela manutenção do ambiente urbano como espaço humano. Valem destacar três características dessa jornalista, escritora e ativista política: o autodidatismo, a articulação política e a maternidade.

Com uma quase aversão ao mundo acadêmico e suas formalidades, Jacobs construiu uma carreira ao redor do aprendizado na prática e uma formação generalista. Primeiro como jornalista depois como pensadora urbana. Sua articulação política veio em oposição a uma força avassaladora que desumanizava as cidades estadunidenses, o planejamento urbano centrado em grandes projetos, herméticos, impactantes e majestosos. Todos os atributos de um “cemitério digno e bem cuidado” nas palavras de Jacobs.

Por ser mulher e mãe em um ambiente opressivamente masculino, Jane Jacobs tinha um elemento fundamental de contestação para apresentar: o feminino. Existe uma corrente de pensamento que coloca o feminino como um valor de complementaridade ao ambiente natural, ainda que nem todas as mulheres sejam sensíveis, cooperativas e solidárias com a natureza. O exemplo que se aplica à Jacobs é no entanto bastante prosaico. Ela foi a oposição fundamental à Robert Moses, o homem que moldou Nova Iorque com grandes projetos e grandes vias expressas. Uma delas, nunca construída, passaria justamente no parque onde Jane levava suas crianças para brincar. Para Moses, a única oposição ao seu plano para o Washington Square Park era um “bando de mães”. De um lado a força cooperativa de uma mulher articulada e do outro a sanha desenvolvimentista que não aceitava barreiras naturais ou humanas.

A via expressa que cortaria o Parque nunca foi concluída e enquanto o reconhecimento póstumo à Jane Jacobs segue cada dia mais presente, a trajetória e realizações de Robert Moses são hoje um legado superado de planejamento urbano.

Três frentes para salvar as cidades

Da trajetória de mobilização de Jane Jacobs, são outras três frentes que ajudaram a manter e promover uma Nova Iorque mais humana. Organização de base para aumentar o número de aliados, pressão nos líderes locais e uma campanha forte para ganhar a atenção dos meios de comunicação. São Paulo atualmente tem todos os elementos propícios para o surgimento de lideranças que confrontem a destruição urbana de um planejamento que já se provou equivocado ao longo do século XX no mundo e na própria capital paulista. O alinhamento entre o poder público e as construturas seja a manifestação mais visível das forças que agem no presente para resultados nefastos no futuro.

A “Operação Urbana Consorciada Faria Lima” sofreu (e ainda sofre) oposição difusa por quem acredita na necessidade de um planejamento urbano centrado nas pessoas e menos na reorganização dos fluxos de tráfego particular e coletivo, principal objetivo declarado da Operação.

Um crescente movimento de base ao redor de questões urbanas vem surgindo já há alguns anos na cidade e se articula para contestar os investimentos em mobilidade individual motorizada. Investimentos que reforçam a destruição do espaço público e geram mais congestionamento motorizado, apesar de alegar o oposto. As festas e ocupações realizadas por diversos atores no Largo da Batata em Pinheiros são parte da contestação necessária e também uma tentativa contemporânea de repensar os usos do espaço público e suas transformações.

Pela festa e com alegria, as pessoas tentam reinventar um espaço que era vivo e degradado e que foi dinamitado para ficar organizado, amplo e morto. O ativismo pé no chão que faz das ruas espaços para dançar. Uma iniciativa feita in loco e com pessoas no mesmo local modificado com um pensamento centrado em mapas, planilhas de investimento e visões aéreas.

A pressão nos líderes locais culminou na incorporação ao discurso do prefeito da cidade de muitas das bandeiras defendidas por aqueles que contestam o modelo urbano do século XX, ainda vigente em São Paulo. Mesmo que sem uma guinada política em favor do planejamento humano ou rompimento com as forças em prol da expansão desmembradora do espaço público.

Justamente pelo perfil festivo dos “protestos”, a cobertura midiática tende a ser positiva, ainda que não explore os elementos de contestação presentes na idéia dos organizadores. Mas ao contrário dos anos 1960, existe o boca-boca amplificado das redes sociais, um espaço mais plural de construção de narrativa, onde se alia a festa com seu viéis de combate ao status quo.

Momento de transição

São Paulo ainda terá de lidar com os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) emitidos para permitir prédios mais altos que custeiem as transformações no espaço público dentro de operações urbanas. Novas avenidas, viadutos, complexos arquitetônicos desconectados da cidade e só acessíveis por meios motorizados, tudo isso ainda segue por vir. Ao mesmo tempo, as forças de oposição se articulam em discurso e na prática para dar um basta a expansão de um modelo de cidade que deveria ter sido deixado para trás.

Nas palavras de Jane Jacobs, se os planejadores urbanos se dispuserem a sair para caminhar nos espaços que buscam “readequar”, será possível ver uma série de dicas para a construção de ambientes agradáveis.

Cidades mais humanas serão feitas através de mais participação das pessoas e da defesa incessante do espaço público. E o pedestrianismo como valor fundamental ajuda que mais gente entenda o que pode melhorar. São Paulo carece da sua Jane Jacobs, mas se há esperança para o futuro, ela reside nas mulheres e homens que festejam e se articulam por uma outra paulicéia possível.

Mais informações:
Downtown is for People – Jane Jacobs, 1958
When David Fought Goliath in Washington Square Park
Conheça a Operação Urbana Faria Lima – SP Urbanismo
CEPAC – Operação Urbana Consorciada Faria Lima
Relações de gênero, meio ambiente e a teoria da complexidade
A Batata Precisa De Você

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