A busca por isolamento e o medo das cidades

Quem tem noções de antropologia sabe que evolutivamente, o cérebro humano só é capaz de manter vínculos com até cerca de 150 pessoas. Os que conhecemos pelo nome, sabemos o histórico de vida e que compartilhamos parte de nossa trajetória de vida.

Assim foi a vida humana até uns 10 mil anos atrás quando a agricultura permitiu sociedades mais complexas até culminar com o nascimento do Estado (e das cidades), uma organização comum há apenas uns 5 milênios.

Nada mais complicado para o cérebro humano portanto que lidar com os milhões de habitantes de uma metrópole. Cada rosto é sempre desconhecido e os espaços privados são limitados e pequenos demais, o que inviabiliza a vida comunal para qual nos adaptamos ao longo de milhões de anos de evolução.

Muitas vezes a solução individual para a opressão das metrópoles é a fuga. Ou para uma sociedade alternativa ou, para quem tem condições, um refúgio na praia ou uma casa de campo.

A fuga se dá em massa em qualquer feriado prolongado, férias ou um simples fim de semana de sol. Em busca da paz inexistente nas cidades, seres urbanos empacotam seus pertences, juntam a família e montam na carruagem motorizada adquirida a prestações.

Soluções para o dia a dia das cidades ficam de lado e todo o sofrimento diário se recompensa no lazer longe de casa e da rotina. Mas de certa forma a fuga feita em carruagens espalha o caos e facilita a destruição de mais asfalto para além dos limites das metrópoles.

As sociedades complexas de hoje requerem soluções complexas, o improviso e fuga que é refúgio rotineiro não oferece as respostas que precisamos. O retorno ao passado e a insistência em modelos datados do século XX também são duas impossibilidades.

Restam-nos portanto utilizar as ferramentas à disposição. Um olhar que contemple sabedoria evolutiva e a essência humana com o conhecimento coletivo que nasceu e prosperou desde a descoberta da agricultura e o surgimento das cidades.

Soluções rodoviaristas

O século XX foi o século do automóvel, mas não foi por acaso. Muita gente ganhou muito dinheiro promovendo a (i)mobilidade urbana do transporte individual motorizado.

Um dos maiores exemplos da mentalidade rodoviarista do século passado foi Robert Moses, homem quem gentrificou Nova Iorque e elaborou um plano de “avenidas parque” que “renovou” a metrópole através da expulsão dos mais pobres e abriu caminho para a circulação motorizada em detrimento de qualquer coisa que estivesse no caminho.

Em sua biografia Moses explica a diferença entre construir rodovias em terras vazias e no meio da cidade: “A única diferença é que na cidade há mais pessoas atrapalhando o caminho”.

Foi ainda em 1950 que o ilustre rodoviarista, um anti-urbanista por execelência, elaborou  o “Programa de melhoramentos públicos de São Paulo”. Nesse plano, tal qual um profeta do apocalipse, Moses prevê que o número de automóveis iria aumentar muito. A capital paulista tinha 1 carro para cada 32 habitantes, atualmente essa relação é de 1 para 2.

Como solução de “melhoramento” para a cidade, Moses propôs que São Paulo se livrasse de “bondes obsoletos” e na impossibilidade financeira de se construir metrô subterrâneo, adotasse os ônibus. Uma “solução razoável e econômica”, que seria feita através da aquisição de 500 veículos coletivos e claro, melhorias na pavimentação asfáltica.

Nos anos 1950 (e ainda hoje), quando um rodoviarista afirma que são necessários investimentos em transporte público, pode-se deduzir que esperasse a criação de grandes e formosas avenidas que por acaso também poderão ser utilizadas por ônibus, mas que irão beneficiar e aumentar o número de viagens em veículos motorizados particulares.

Ao longo dos anos São Paulo deixou de lado a hipocrisia rodoviarista e efetivamente foi capaz de direcionar vultosos investimentos em túneis, pontes e viadutos simplesmente para facilitar os deslocamentos motorizados. Minhocão, passagens subterrâneas e a Ponte Estaiada comprovam.

Pela linha de raciocínio de Robert Moses, era preciso se livrar das muitas pessoas no caminho que atrapalhavam a livre marcha do progresso, que no século XX significava automóvel.

Felizmente a noção de progresso rodoviarista já é amplamente contestada. Em Nova Iorque e ao redor do mundo. Afinal, os investimentos em mobilidade individual motorizada ao longo das últimas décadas ajudaram na promoção da decadência dos centros urbanos em nome da expansão para os subúrbios.

O desafio que nos apresenta o século XXI é o embate entre a degradação urbana promovida pelas grandes avenidas e os caminhos para os subúrbios e a reconstrução de uma cidade na escala humana em que haja mais densidade e diversidade.

São Paulo precisa de uma nova semana de 1922 que promova a “antropofagia urbana”, capaz de misturar a periferia pobre com os condomínios de luxo. Ter junto e misturado Alphaville, Cidade Tiradentes que só assim “resolveriam” a Cracolândia.

Vias expressas como a 23 de maio que dêem lugar a ruas de bairro. Tudo interligado por espaços para pessoas e redes de transporte que sejam mais que ônibus lotados para quem não conseguiu financiar um carro.

Nessa nova cidade muitas bicicletas irão circular, e ao invés de expressas vias travadas, teremos velocidades humanas constantes e descongestionadas.

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Textos de apoio:

Transporte coletivo já era ‘urgente’ em 1950 – André Monteiro – Folha de S. Paulo

– O homem que retalhou NY – Sérgio Dávila – Folha de S. Paulo

A soma dos erros nas ruas

Trupicão, tropeço, rola, tombo, catar cavaco, derrapar na lama, escorregar no tomate… São tantas maneiras de sofrer acidentes quando se está a pé em casa ou nas ruas. As mais perigosas são dentro do banheiro, aquele local cheio de água e azulejos derrapantes. Seres humanos são imperfeitos a ponto de estarem sempre sujeitos a cometerem os mais diversos tipos de erros, seja onde for.

Ao longo do século XX os erros humanos cometidos nas ruas passaram a ser muitas vezes com pena de morte. Muitas vezes a pessoa condenada cometeu o pequeno erro de estar no local errado na hora errada. Só no Brasil os números (imprecisos) apontam que a pena capital contra erros humanos ao redor do espaço público de ruas e avenidas e nas estradas varia ao redor dos 50.000 todos os anos.

Dois fatores explicam claramente a diferença entre os erros humanos quando puramente humanos e aqueles cometidos nas ruas. O somatório entre massa e velocidade de veículos automotores. Por esse motivo inclusive a legislação brasileira de trânsito contém aquele trecho de que o veículo maior deve zelar pela segurança do menor e todos pela incolumidade do pedestre.

A campanha de trânsito da Nova Zelândia que ilustra esse texto demonstra com clareza que erros humanos podem ter consequências mais graves do que deveriam quando se tem na equação a massa mais a velocidade de um veículo automotor.

O espaço simbólico das ruas aos poucos tem sido entendido como um espaço a ser compartilhado, e nas cidades esse compartilhamento se faz através de medidas corajosas que tratem as máquinas como convidados trapalhões das cidades, que devem por isso circular em Zonas 30, ou seja, a velocidades baixas.

Perspectivas para o futuro

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Rever o passado é sempre um bom exercício, mas também vale muito a pena aproveitar a troca de números no calendário para imaginar e pensar no futuro.

Em 2013 foram completados os 10 anos da Transporte Ativo, uma década que viu florescerem e crescerem iniciativas em prol de cidades mais humanas. Foram projetos implementados, conhecimento que se multiplicou e acima de tudo novas mentalidades que se tornaram comuns.

Quem poderia imaginar que se falaria tanto em ruas para pessoas, cidades humanas e a resiliencia do espaço urbano. Nenhum desses conceitos é propriamente novo ou fruto do pensamento em voga nos últimos anos. Ainda assim, representam mentalidades que mudam.

Imaginar o futuro é certamente um bom prazer. E hoje, é possível visualizar mudanças que ajudem a tornar a vida nas cidades um pouco melhor. Cidades com mais bicicletas circulando em infraestrutura de qualidade, mais espaços de lazer e convivência que priorizem as pessoas, a valorização da qualidade de vida como pedra fundamental de todo o planejamento urbano.

Dificuldades continuarão no caminho e o apego ao passado de velhas estruturas também. Mas o próprio caos e as dificuldades de circulação de pessoas, algo tão premente nesse século XXI, serão a mola propulsora das transformações necessárias. O fator motivador para diferenciar as cidades, e os administradores do passado, das cidades do futuro.

Bicicletas, skates e a força da lei

A polícia de Nova Iorque passou um grande vexame ao tentar coibir uma corrida informal de skatistas que acontece na cidade desde o ano 2.000. Começou como um pequeno grupo que chamou a aventura de “Broadway Bomb”.

Algumas poucas regras e lançaram-se às ruas. Até que em 2012, com milhares de participantes a iniciativa tornou-se ilegal e, com o devido amparo do judiciário, a polícia resolveu agir. As cenas de loucademia de polícia do vídeo acima mostram como quando a história são skates é preciso pensar fora da caixa.

Louvável a idéia dos policiais de “capturar” skatistas utilizando uma espécie de rede de arrastão nas ruas. Mas a reação óbvia da massa de surfistas do asfalto expôs ao ridículo os profissionais da segurança esperançosos em cumprir seu dever de garantir a lei e a ordem.

A criminalização de “usos alternativos das ruas” é certamente uma faceta cruel das cidades que se tornaram espaços para movimentos motorizados acima de todas as outras formas de circulação. O esforço em prol da manutenção de estágio das coisas por parte dos defensores da “lei e da ordem” tem seu lado cômico, mas também tem outros desdobramentos.

Na cidade de São Paulo o exemplo de criminalização das ruas tramita na Câmara de Vereadores. Imbuído de um discurso em defesa “da ordem” e do combate aos furtos e roubos de bicicleta um vereador optou por tirar da gaveta um estapafúrdio projeto de lei municipal que obriga o emplacamento de bicicletas e até o uso de “calçados apropriados” para pedalar.

A contra-mão da história infelizmente ainda segue seu rumo. Felizmente os skatistas de Nova Iorque estão aí para nos ensinar que as forças do passado são incapazes de segurar o movimento do mundo.