Carnaval, democracia nas ruas

O carnaval é quando as ruas voltam a pertencer as pessoas, sem concessões. Em massa e em festa milhares de enebriados foliões tomam conta dos espaços públicos Brasil afora. Durante alguns dias o que é de todos passa ser verdadeiramente de quem queira. O lúdico e o “estar” deixam completamente de lado o fluir e o circular.

Durante o reinado do Momo a circulação se faz por outras vias, bicicletas e veículos motorizados devem procurar alternativas para fluir, por ser grande demais, a massa em alegria toma conta de todos o espaço. De porta a porta, do lado de fora, apenas gente.

A força incontrolável da festa inspira outras cidades possíveis. Quatro dias no ano são muito pouco para ter a cidade aos pés de quem está a pé. A demanda reprimida fica clara por mais espaços públicos de qualidade. Pessoas gostam de pessoas e o excesso e densidade do Carnaval evidenciam também que o aperto só é tolerável com música e festa.

Durante os outros 361 dias do ano o casamento entre circulação e diversão perde espaço. A cidade para as pessoas que funcionou durante a folia fica fechada. Será que precisaremos esperar até o próximo Carnaval para libertar a vontade de estar em companhia e em alegria nas ruas?

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Cães, bicicletas e o cavalo-vapor

O mais famoso site de leilões no Brasil é uma boa maneira para conhecer o que está disponível no mercado de bicicletas, mas funciona também como fórum de debates sobre produtos e outros assuntos.

Um anúncio simples com uma única foto. Uma bicicleta nacional com suspensão dianteira e traseira, paralamas e bagageiro. E nas palavras do anunciante: “pronta para sair pedalando depois da compra”. No espaço para perguntas, algumas ofertas de troca e uma saltou aos olhos:

Amigo, tenho um cachorrinho shi tzu com pedigree, preto e branco com 60 dias, vacinado e vermifugado, que vale mais ou menos $700. Te interessa fazer esta troca?

A resposta dada pelo vendedor discorre sobre algumas incongruências da nossa sociedade em relação ao tratamento com os animais.

Amigo, animais são criaturas sencientes e não mercadorias. Esse filhote merece ter uma vida digna. Você me ofereceria uma criança por R$ 700? Então como oferece um cão? Do ponto de vista ético (e não jurídico ou cultural), qual a diferença? Aliás, será que há uma diferença de fato? Será que essa diferença não foi inventada? Ou só porque todo mundo faz está correto? Vou lhe dar um conselho: se não quiser ficar com ele, doe o cachorrinho para alguém que lhe inspire confiança, alguém que não vá abandoná-lo ou negociá-lo sob hipótese alguma. Não utilize como critério de escolha a disposição em pagar algumas centenas de reais por um ser capaz de sentir dor e expressar emoções. O abandono de animais em São Paulo é altíssimo, e as ruas – pode apostar – são um péssimo lugar para se sobreviver… Desculpe a franqueza, mas você tocou num princípio nevrálgico da minha ética. Boa noite e muita paz para você.

Rever o conceito das cidades em que vivemos também é repensar a maneira com que nos conectamos a outras formas de vida que habitam esse mesmo planeta. Antes da invenção da carruagem sem cavalos que hoje domina nossas ruas, dois graves problemas nas grandes cidades eram os dejetos de animais e as carcaças dos mortos. Trocamos cavalos de carne e osso pelo “cavalo-vapor”. Com isso os cães que perambulavam nas ruas com tranquilidade hoje encontram-se apenas nas periferias com menos trânsito motorizado ou em pequenas cidades.

A cena de abertura do clássico “Meu Tio” de Jacques Tati retrata esse momento histórico em que as cidades tornaram-se menos amigáveis com os vira-latas e mais convidativas as carruagens movidas a cavalo-vapor.

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Fábulas com animais

Explicar cidades por meios de metáforas e fábulas resvala em duas imagens fundamentais: o bode na sala e o touro na loja de porcelana.

Um chefe de família tinha de ouvir reclamações sobre o quanto a situação da casa era ruim, era mal conservada e cheia de consertos a serem feitos. Ao invés de resolver o problema, o homem trouxe para a sala o bode mais fedorento que tinha. A situação ficou insuportável. Depois de algumas semanas, o benevolente pai e marido tirou o bode e milagrosamente a família passou a só lhe tecer elogios.

O que está ruim, pode sempre ficar pior e basta ficar menos pior para aliviar a situação. A escalada da poluição e congestionamentos abrem espaço para que bodes entrem na sala e piorem ainda mais a qualidade de vida da população. Olhos atentos servem justamente para não deixar entrar o fedorento animal e nem esquecer como era antes caso ele realmente entre.

O grande problema em relação ao “bode” urbano é que ele é cheiroso e silencioso por dentro, mas gera barulho e desconforto para quem está do lado de fora. A metáfora do touro na loja de porcelana ajuda a explicar a diferença de tratamento que o bode recebe.

Tanto faz se é um elefante na loja de cristais ou um touro na loja de porcelana, a imagem é a mesma. Um bicho grande e forte, cercado de fragilidade por todo o lado. Quem iria convidar quadrupedes enormes para um ambiente tão delicado. De certa maneira foi o que aconteceu com nossas cidades. Mais do que isso, o touro e o elefante tornaram-se sagrados.

Estamos passando pelo ponto de inflexão em que é fundamental parar de tentar tirar a porcelana da loja, só porque agora entrou um touro. Temos de tomar medidas para domar o touro, já que ainda iremos conviver com ele por mais algum tempo.

Moderação de tráfego, segurança para os componentes mais frágeis do trânsito são medidas que terão de ser tomadas. Não apenas para garantir qualidade de vida para as pessoas, mas para assegurar a sobrevivência das cidades.

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Fluxos de Água e de Vida

Condição fundamental para a existência de vida, a água sempre foi fator preponderante em qualquer ocupação humana. Ao redor de rios cresceram cidades e deles retiravam o precioso líquido, mas também transportavam-se neles, podiam extrair energia. O fluxo das águas sempre esteve associado a qualidade de vida, em seu mais amplo sentido. Desde a garantia de sobrevivência até a beleza da paisagem.

Durante o século XX, sempre ele, as ocupações urbanas intensificaram ainda mais a perda de simbiose com o fluxo de vida dos rios. Esgoto, canalizações, rios enterrados para dar lugar ao asfalto.

Esse janeiro de 2010 tem ensinado aos brasileiros, da pior maneira possível, quão importante são os rios e as águas nas cidades. Deslizamentos em encostas e alagamentos nas ruas tem paralizado o trânsito paulistano. A “locomotiva do Brasil”, responsável por mais de 10% da riqueza econômica do país, enferruja um pouco a cada tragédia com mortos e em interrupções do fluxo motorizado.

Os prejuízos financeiros são astrômicos, mas maior é o prejuízo para as pessoas que passam a conviver com o medo e a insegurança. Seja de soterramentos, ou de ficar ilhada por conta de ruas alagadas. E não são exclusividade de São Paulo, são apenas maiores na maior cidade da América Latina.

A tragédia das chuvas em São Paulo ou em qualquer cidade brasileira é acima de tudo um convite a reflexão sobre como construimos nossas cidades e o que está sendo priorizado. As grandes avenidas de São Paulo, assentadas em grande parte no leito de rios e córregos, representam mais um erro de percepção em relação ao poder dos rios.

Piscinões e canalizações nunca serão suficientes e requerem um custo de manutenção proibitivo e que nem sempre será pago. Uma cidade do tamanho de um país tem sempre prioridades de mais para poder cuidar de todas com a devida atenção.

Humanizar as cidades é também tratar de maneira correta seus rios. Devolvendo-os para que a população possa usufruir deles (como foi feito em Seoul) ou simplesmente permitindo que eles aos poucos possam voltar a serem rios. Poderosos fluxos de água que seguem sempre o caminho mais fácil que a gravidade lhes manda tomar.

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Mais amor, mais transporte, mais esporte

O Campus da Universidade de São Paulo na zona oeste da capital formou personalidades políticos, cientistas, pesquisadores e pensadores. A cidade universitária nasceu também para desarticular a luta dos estudantes contra o regime. Os prédios e vias seguem firmes, no entanto uma universidade é um lugar em outro espaço tempo, onde alunos sempre renovam o ambiente.

Carente de espaços públicos de qualidade, muitos paulistanos buscam refúgio no campus da universidade. Pistas são tomadas por ciclistas em máquinas leves capazes de alcançar altas velocidades, corredores de rua também frequentam a USP para treinar. A atitude agressiva de alguns esportistas em bicicleta no trânsito dentro do campus fez com que a presença deles chegasse a ser até mesmo proibida.

Um anacronismo. Mas que é baseado na atitude opressora de pelotões de ciclistas em alta velocidade que por serem um grupo forte intimidavam os demais frequentadores da universidade. Assim como o Pateta fica feroz atrás do voltante alguns ciclistas faziam o mesmo. A proibição na USP não está mais em vigor, mas ainda existem conflitos e a administração não sabe bem como resolver o “problema ciclístico”. Até mesmo o autódromo de Interlagos foi proposto como local para substituir os treinos dos ciclistas.

Esssa semana foi anunciada mais uma medida que claramente tem tudo para ser ineficaz naquilo que se propõe. Ciclistas e corredores deverão se cadastrar e receber gratuitamente uma carteirinha. A universidade nesse aspecto torna-se um clube, com os sócios (alunos e professores) e os atletas fazendo o papel de convidados.

A intenção, segundo o coordenador do campus, Antonio Marcos Massola, é reduzir as ocorrências, como discussões e brigas envolvendo pessoas de fora da universidade, que hoje não se submetem a nenhum tipo de controle.

Medidas de burocratização e restrição do uso nunca foram responsáveis por melhorar espaços públicos. Os ciclistas tomaram o campus por conta do asfalto liso e das pistas livres. A conduta inadequada de alguns levou aos conflitos, no entanto a melhor maneira de expulsar os indesejados é convidar os “desejáveis” a tomarem conta do espaço.

Um campus tomado por ciclistas se deslocando e passeando em baixa velocidade, ou com pistas que desfavoreçam altas velocidades são medidas muito mais efetivas do que cadastros. Regras nunca foram respeitadas simplesmente por estarem escritas em algum lugar. Leis servem para minimizar conflitos, mas quando são pensadas como um fim em si mesmo, sem levar em conta o fator humano, tendem a ficar presas no papel.

As adequações para a boa convivência entre velozes ciclistas, ciclistas lentos, corredores, e a população do campus pode e de ser feita de maneira mais amistosa. Mas restrições nunca foram o caminho e os incentivos para a prática adequada dos esportes na Cidade Universitária ou em outros locais da cidade de São Paulo é certamente um ganho para todos os paulistanos.

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