Frágeis Criaturas

O arquiteto David Sim, representando o escritório do Jan Gehl, veio recentemente ao Brasil para ministrar um curso de dois dias para técnicos da Prefeitura do Rio de Janeiro. Realizado no auditório do Instituto Pereira Passos, o workshop contou com a presença da Transporte Ativo e deu a todos uma grande lição para pensarmos e repensarmos as cidades.

A primeira premissa deve ser as pessoas, já que a condição humana não se modificou ao longo dos poucos anos de urbanização. Seres humanos ainda são as mesmas frágeis criaturas que precisam de abrigo, conforto e principalmente se sentirem seguros. Qualquer técnico ou administrador municipal deverá ter sempre em mente que apesar dos avanços tecnológicos, da capacidade técnica de construir complexas infraestruturas de aço e concreto no fundo somos apenas “humanos, demasiadamente humanos”.

Através da arte e da filosofia o ser humano sempre vislumbrou um novo futuro para a espécie. Arquitetos e urbanistas tem formação artística em suas grades curriculares de graduação certamente por esse e outros motivos. Ver além do que existe hoje sempre foi prerrogativa dos artistas. Além disso, a arte é sempre mais rica quando atinge as pessoas, quando fala sobre o ser humano e principalmente para o ser humano.

Mas há um problema grave no que tange a imaginação de quem planeja as cidades. E foi esse justamente o tema da primeira palestra do curso ministrado por David Sim: “A Dimensão Humana do Planejamento”. Pensar as cidades do futuro é dar a devida importância ao destinos das vidas das pessoas em detrimento a cidade que temos hoje, pensada para reluzentes objetos que se movem.

Nossa espécie construiu diversas culturas, diversas formas de ocupar o espaço, mas nunca deixamos de ser lentas, pequenas e sensíveis criaturas. E a grandeza de nossas capacidades residiu sempre na capacidade de organização em grupo. E tudo que a arquitetura puder fazer para unir e aproximar pessoas, será o caminho a ser trilhado para maximizar a real grandeza das cidades, seus habitantes.

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– Saiba mais sobre os projetos e a visão do Gehl Architects.

Recompensas para os Ciclistas

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O texto abaixo é uma tradução do Copenhagenize para ser memorizado e sempre lembrado em caso de dúvidas em relação a importância de se promover o uso da bicicleta e combater argumentos ruins contra elas. O texto também foi traduzido aqui.

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O registro e fiscalização de bicicletas na Europa (e no mundo) ainda levanta algumas polêmicas e pessoas chegam a sugerir que ciclistas devem pagar pelo uso das ruas, assim como fazem os motoristas. Essa linha de raciocínio mostra-se bastante fraca em provar seus motivos.

Na União Européia vivem meio bilhão de pessoas, 100 milhões destas pedalam diariamente de acordo com a Federação Européia de Ciclismo. Nenhum desses cidadãos sofre a inconveniência de registrar suas bicicletas, menos ainda na Holanda e Dinamarca – países com o maior número de ciclistas.

Seguem três bons argumentos para rebater a idéia de registro de bicicleta:

1. Uso das ruas e estradas e desgaste das vias

Imaginemos o pesadelo logístico de registrar dezenas de milhões de bicicletas. Primeiro deveria ser criado ou adaptado um sistema informatizado para armazenar os registros de bicicletas. Funcionários teriam de ser contratados para operar o sistema e mais dinheiro teria de ser gasto para emitir as licenças.

Consideremos o impacto nas vias. O peso médio de um automóvel é de 1650 kg (fonte). Um chute aproximado, pode intuir que em média uma bicicleta pese 13 kg. Com base nesses números, uma bicicleta pesa 0,8% de um automóvel.

Fica claro que o impacto do peso das bicicletas nas vias é irrisório. Imaginemos que o preço de registrar um automóvel seja de $100 tendo como base os impactos negativos no desgaste das vias. Com base nisso, registrar uma magrela custaria 80 centavos.

Agora seria necessário subtrair um pouco desses 80 centavos. Na Dinamarca taxas sobre o desgaste das vias e para proteção ao meio ambiente estão embutidas no custo de licenciar um automóvel, além de sobretaxas sobre o peso a depender do tamanho do carro. O impacto negativo para o meio ambiente de um carro é grande, a bicicleta não gera nenhum durante seu uso. Apenas para escolher um número, vamos tirar 50% dos 80 centavos com base no impacto zero da bicicleta no meio ambiente. Chegamos a 40 centavos por bicicleta. Esses 40 centavos resultariam em nada depois de contabilizarmos as taxas administrativas.

Não é preciso ser economista para notar que o projeto seria bastante deficitário. A fiscalização seria outro problema. Os aparatos policiais certamente tem prioridades mais importantes do que conferir a documentação de bicicletas. Ou seja, um complexo sistema de registro de bicicletas seria um enorme desperdício de recursos públicos e isso não é interessante para ninguém.

Campanhas de conscientização e em prol da segurança viária teriam melhores resultados no longo prazo.

Também vale a pena lembrar que mais bicicletas nas ruas significaria menos desgaste das vias. Isso iria reduzir a necessidade de caras obras para tapar buracos, recapear pistas, etc. Seria mais barato para os motoristas e muito mais conveniente termos menos interrupções no viário para obras.

2. Impacto na Saúde

Além dos impactos negativos irrisórios nas vias, ciclistas também beneficiam a sociedade como um todo ao optar pela bicicleta. Os benefícios são muitos e extensivamente bem documentados. Numa relação direta com o uso do automóvel, é interessante notar o que dizem alguns estudos sobre poluição.

O nível de partículas poluentes dentro de um automóvel é muito maior do que do lado de fora – na bicicleta por exemplo. Alguns links em inglês falam mais sobre isso.

Ciclistas Respiram Melhor
O trânsito motorizado mata 10 vezes mais do que os acidentes de trânsito

Além de ser mais danoso aos pulmões sentar-se dentro de um carro do que fora, consideremos o que diz um dos links:

Na Dinamarca aproximadamente 4.000 pessoas morrem anualmente em consequência da poluição do ar causada pelos automóveis. O número é dez vezes maior do que as mortes DENTRO dos carros. Estudos recentes afirmam que respirar a poluição gerada pelo trânsito motorizado é mais perigoso para sua saúde do que simplesmente transitar.

Morrem 3.400 anualmente tendo como causa direta a emissão das emissões que saem dos canos de descarga dos carros. Além disso de 200-500 pessoas perdem a vida prematuramente por doenças do coração e aumento da pressão sanguínea causada pelo barulho gerado pelo trânsito motorizado. Isso mesmo… apenas o BARULHO!

Fica difícil quantificar o quanto esses números iriam aumentar se estudos similares fossem feitos nas grandes cidades brasileiras. Afinal a população de toda a Dinamarca é de 5 milhões de pessoas.

Ciclistas portanto reduzem os custos da saúde pública e por consequência deixam mais leitos livres nos hospitais para quem necessita deles. Quem pedala também promove a própria saúde – irá passar menos dias em casa por conta de doenças além de ter uma maior produtividade contribuindo para um impacto positivo na economia.

um belo estudo dinamarquês acerca do tema. Alguns trechos:

– Pessoas ativas fisicamente vivem cerca de 5 anos a mais do que pessoas inativas
– Pessoas inativas sofrem em média 4 anos a mais com doenças degenerativas
– Pedalar tem os mesmos efeitos positivos para a saúde do que qualquer outro exercício. Quatro horas por semana, ou aproximadamente 10 km por dia é um nível excelente de atividade. Trata-se de quando pedala em média o cidadão de Copenhague, nos deslocamentos ao trabalho e outras viagens.

Além disso:

Caso o cidadão de Copenhague pedalasse 10% mais:
– Seriam mais 41 milhões de quilômetros pedalados (atualmente são 1.2 milhões de km/dia em Copenhague)
– O sistema de saúde deixaria de gastar 55 milhões de coroas dinamarquesas por ano (aprox. R$ 20 milhões)
– Seriam economizadas 155 milhões de coroas (R$ 55 milhões) em horas perdidas (devido a doenças)
– Seriam 57.000 dias de trabalho a mais que hoje são perdidos por conta de doenças. Um aumento de 3,3%
– Mais 61.000 anos de vida
– Menos 41.000 anos vivendo com doenças degenerativas

3. Seja pago para pedalar

Todo o raciocínio acima deve de alguma maneira levar a recompensas para os ciclistas. Uma prefeitura que constrói ciclovias segregadas, encorajando novos ciclistas a pedalar, irá gastar menos em manutenção viária e saúde pública.

Em Copenhague descobriu-se que para cada novo quilômetro de infraestrutura viária para bicicleta:

Ao construir uma ciclofaixa em ruas com um trânsito de 2.500 bicicletas e 10.000 automóveis por dia iria aumentar o número de bicicletas em 18-20% naquele trecho.
Além de acarretar uma diminuição entre 9-10% no número de carros e menos 9-10% feridos em acidentes.
– Uma economia de 246.000 coroas (R$ 86 mil) para a saúde pública
– Economia de 643.000 coroas (R$ 225 mil) em perdas de produtividade.
– Um queda nos custos com saúde, perda de produtividade e acidentes num total de 633.000 coroas (R$ 221.500)
– O quilômetro extra significa 170.000 km pedalados a mais.
– Para cada 1 coroa gasta, a sociedade economiza 5 coroas.

Isso sim é incentivo econômico!

Inclusive, o Departamento Norueguês de Estradas (Vegvesen) optou por pagar seus funcionários para irem trabalhar de bicicleta ao invés de irem de carro. Muito dessa decisão devido aos estudos e conclusões apresentados acima.

“Ao encorajar as pessoas a pedalarem ou caminharem ao trabalho nós garantimos que eles façam uma atividade física e ao mesmo tempo diminuam os impactos no trânsito,” – declarou Roar Gartner chefe de uma região Administrativa da cidade de Vestfold na Noruega.

Resumo Resumido

Caso alguém seja confrontado com argumentos para que os ciclistas paguem pelo registro de bicicletas, a série de argumentos acima irão com certeza dar uma boa base para a contra-argumentação.

Ao invés de buscar motivos para fazerem os ciclistas pagarem para circular, os motoristas tem mais que nos pagar um chopp e agradecer em nome deles, das crianças (de hoje e do futuro), do país e da sociedade em geral.

Um Plano Cicloviário em Lei

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São Paulo foi pioneira na consolidação de uma lei que dispunha sobre a criação de um sistema cicloviário. Uma maneira de o poder legislativo municipal exercer pressão em prol do uso da bicicleta na cidade. No entanto leis precisam também de adaptações a novas conjunturas e por conta disso foi redigida uma nova lei para melhorar a antiga.

O novo texto com as contribuições de melhorias foi protocolado na Câmara Municipal de São Paulo, recebeu a numeração de Projeto de Lei (PL) 655/2009, e traz algumas novidades complementando a criação do Sistema Cicloviário do Município de São Paulo como:

– Equiparação dos triciclos não motorizados a bicicleta;
– Permissão por lei de transporte de bicicletas dobráveis em trem, metro e ônibus;
– Convênios com municípios vizinhos na implantação de projetos de melhoramentos cicloviários criando ciclovias intermunicipais;
– Definição de instalação de paraciclos no formato “U” ao contrário, devido ao formato “grelha” danificar bicicletas;
-Ampliação de locais e estabelecimentos que devem prever áreas para estacionamentos de bicicletas;
– Criação do Conselho Municipal de Melhoramentos Cicloviários, composto pelos membros do atual Pró-Cliclista e sociedade civil organizada, de forma deliberativa;
– Estabelecimento de prazo para adequação da em 360 dias;
– Criação de penalidades em casos de inobservância da lei.

Mesmo já apresentado, o PL ainda está em debate e novas alterações poderão ser incorporadas antes da votação. Já está inclusive programada uma Audiência Pública onde a sociedade está convidada uma vez mais a debater e propor mudanças ao projeto.

São Paulo já tem quase 15 mil leis, praticamente uma por quilômetro de viário. Para que a nova lei do Plano Cicloviário não fique “na gaveta”, a participação e o debate do Projeto de Lei é fundamental, afinal o legislativo responde sempre a demandas populares. A voz dos ciclistas tem portanto uma boa oportunidade de ser ouvida.

O texto do PL foi posto em debate na última reunião da Comissão de Bicicletas da ANTP e os participantes já estão em contato com o Gabinete do Vereador Chico Macena para melhorar o que for possível. Fica o convite para os ciclistas, paulistanos ou não, para colaborar na melhoria da futura lei. Mais do que um simples PL, o texto tem sido reproduzido (no todo ou em parte) em outras cidades e tem potencial para sair da câmara da capital paulista e ajuda a definir melhores políticas cicloviárias pelo Brasil afora.

Vida, Liberdade e a Busca pela Felicidade

O título deste post é a tradução de um dos mais famosos trechos da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Essa simples frase é repetida como um pequeno mantra ético do país e foi reescrita no streetsblog para se adequar a uma nova lógica em nascimento nos EUA e ao redor do mundo. Cidades cada vez mais adotam o lema da “Vida, Liberdade e Busca pelo Espaço Público“.

O século XX do automóvel redistribuiu o espaço urbano e fez das ruas local de fluxo. A perda de qualidade de vida salta aos olhos e está sendo revista. Urbanóides mundo afora já promovem a mudança de percepção que irá construir as cidades do futuro. Um espaço onde o mais importante seja a vida, a liberdade e a busca pela felicidade.

Enquanto isso, ao ver um gatinho na rua, grite!

“Scream With Me” // PeaPod Pilot from Nate Byerley on Vimeo.

A Invisibilidade da Diáspora

Relações possíveis e impossíveis entre um plano cicloviário e a barroquíssima Capital Reconvexa

Lucas Jerzy Portela*

A população cicloviária de Salvador é quase toda pobre, negra e periférica (lembrando que como o Rio de Janeiro, Salvador tem “periferias” no centro, inclusive entre bairros nobres – e não apenas na periferia propriamente dita, como em São Paulo ou Recife). Uma população que não faz idéia de que a bicicleta é um meio legítimo de transporte, sobre o qual incide algumas regras. Em geral ela sequer deduz intuitivamente estas regras, achando que o correto é andar na contra-mão dos carros, e que os refletores atrapalham ao invés de ajudar…

Isso se dá pela pobreza de capital linguístico em que se encontra (além da material), mas também pela posição de invisibilidade que ocupa. É comum o visitante de Salvador se surpreender: “onde estão os tão falados 80% de população negra?”. Estão invisíveis.

Se a bicicleta já é por si um veículo em diáspora e da diáspora, invisível, em Salvador ele se faz invisível exponencialmente, e duplamente diaspórico: é bicicleta de preto (isto é: pobre) – e de preto que não se autoriza a usá-la como outro veículo qualquer. É uma bicicleta que não se coloca apenas à margem – mas à margem da margem.

Claro está que isso vem de uma histórica segregação da população em relação a cidade. A reforma do Pelourinho, durante o carlismo, retirou de lá uma população identificada com o bairro – e mandou pra conjuntos habitacionais no subúrbio. E o Pelô virou um shopping pra gringo, que nem como Shopping funciona. Mais do que isso: antes, seis linhas de ônibus chegavam até sua principal entrada, a Praça da Sé. Hoje, apenas 4 vão até a Rua da Ajuda. A Sé foi lacrada para carros, mas isso não significa uma boa apropriação para os pedestres. Ao contrário, como Shopping, a principal via de acesso ao Pelô são estacionamentos, pagos, entrando pelos fundos – isto é, pelo Vale da Barroquinha.

A diferença é gritante se se compara com a única etapa da reforma já feita fora do carlismo, o Carmo e o Santo Antônio Além do Carmo – em que a população continua morando, e por conseguinte os índices de violência e pobreza são muito menores. Curiosamente, é um bairro pedestre, apesar de histórico é pouco turístico – e se usa bicicleta, não obstante seja no topo de uma montanha.

Não é sempre que a população pobre, e negra, de Salvador deixa de sentir a cidade como patrimônio seu legítimo e que deve usar sem vergonha – embora isto seja a regra. O Solar do Unhão, Museu de Arte Moderna da Bahia, com belíssima praia dentro e ao lado da favela da Gamboa de Baixo, é totalmente apropriado. Moleques mulatos vão a nado para o MAM, abusam dele como querem – e o amam e cuidam. Não se envergonham de lá estar de calção de banho, enquanto a alta burguesia toma café e ouve jazz. Fazem parte visível da paisagem – sem o que o MAM não teria a menor graça. Seria um MAM sem pôr-do-sol.

Oxalá esta venha a ser a regra – também para que as bicicletas, um dia, como os Tambores da Liberdade, e o Tapete de Turbantes dos Filhos de Gandhy, ocupem as ruas da SanFrancisco Nagô-Malê, da Lisboa Sudanesa revisited. A bike bem que poderia ser um atributo mágico de um novo Exú, em banda-larga, nascido do rum, do rumpi e do lé, lá no Terreiro do Afonjá. Larô-iê!

* Lucas Jerzy Portela é psicólogo, mantem o blog de crítica cultural O Último Baile dos Guermantes e é ex-namorado de arquiteto – o que acaba por ser um atributo importante para um cicloativista newbie.

Mais:
Bó de Bike, Salvadô
Tuas ladeiras e montes, tal-qual um postal