Mobilidade urbana, um direito básico

Foi somente no século XX que as cidades perderam seu caráter de acomodar com segurança uma diversidade de meios de deslocamento. Nas palavras do historiador Peter D. Norton em seu livro “Fighting Traffic”:

Antes que as cidades norte americanas pudessem ser fisicamente reconstruídas para acomodar automóveis, as ruas tiveram de ser reconstruídas socialmente como espaços nos quais o carro pudesse ser aceito. Até então, as ruas eram consideradas espaços públicos onde condutas que pudessem colocar em risco ou obstruir os outros (inclusive os pedestres) eram consideradas desrespeitosas. O direito dos motoristas era portanto frágil, sujeito a restrições que inviabilizavam as vantagens de ter um carro.

Ruas como espaço para o fluxo motorizado são uma construção subjetiva do século XX, algo perfeitamente reconfigurável dentro de um novo conceito político que se desenha no século XXI. Esse redesenho de nossas cidades tem de ser portanto construído antes de tudo nas mentes antes de se materializar fisicamente.

Essa reconfiguração mental passa por enxergar para além da forma atual das cidades e seus usos. Medidas de incentivo e valorização de pedestres e ciclistas são o caminho, mas não existe um roteiro definido. Apenas diversos primeiros passos que busquem deixar claro que cidades são para pessoas e qualquer objeto ou estrutura física serão sempre coadjuvantes.

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Pela manutenção da lei da inércia

Uma lei no estado de Idaho nos Estados Unidos existe desde os anos 1980 e permite que ciclistas cruzem sem parar por placas de “pare”. É possível tomar tal atitude com segurança pela visibilidade e agilidade que um ciclista em movimento tem. Sem barreiras ao olhar, é possível definir quando e se é possível parar em um determinando cruzamento, tudo em nome da inércia.

Abaixo um vídeo explicativo demonstra a simplicidade do conceito e a necessidade de se adotar regra semelhante no estado de Oregon. Infelizmente a legislação não foi aprovada, o que faz do pequeno Idaho pioneiro e único em possibilitar que o ciclista julgue se é necessário ou não seguir a orientação de parar.

Uma tradução aproximada:

A bicicleta é provavelmente o meio de transporte mais eficiente jamais inventado.

Um ciclista mediano gera apenas 100 watts de potência, aproxidamente a mesma energia necessária para acender um lâmpada. Compare isso com a potência média de um automóvel, o suficiente para ligar 100.000 lâmpadas. E ainda assim, uma bicicleta pode ser uma alternativa viável ao automóvel.

A eficiência da bicicleta é quase inteiramente dependente da sua inércia. Uma bicicleta em movimento funciona no seu pico de eficiência. Até mesmo quando diminui a velocidade, ela continua eficiente. Somente uma parada por completo acaba com toda a energia disponível para o ciclista. Por conta disso, os ciclistas fazem o possível para manter sua inércia e usar da maneira mais eficiente possível os seus 100 watts de potência.

Mesmo que desejem manter-se em movimento, a maioria dos ciclistas se aproxima de cruzamentos de parada obrigatória com o máximo de cuidado. Nem que seja pela noção de que eles tem mais a perder em caso de colisão. A maioria dos ciclistas se aproxima de uma placa de “Pare” com a cautela que aprenderam nas lições da autoescola (*). Eles diminuem a velocidade, olham para a esquerda, depois para a direita e para a esquerda novamente. Antes de prosseguir, eles se asseguram de que a passagem está livre e de que tem a preferência no cruzamento. Muitos, ou até mesmo a maioria, são capazes de fazer tudo isso e ainda preservar um mínimo de inércia. Essa aproximação de uma placa de “pare” é conhecida como “parada em movimento”.

A “lei do Idaho” iria permitir que ciclistas tratassem uma placa de “pare” como uma de “dê a preferência”. Iria portanto legalizar essa prática corriqueira de “paradas em movimento”. Por conta disso iria também incentivar o uso seguro e eficiente da bicicleta como meio de transporte. A segurança da proposta é inquestionável, já que se baseia em uma lei existente há mais de 27 anos no Idaho. E o histórico de segurança no trânsito para bicicletas é excelente no estado. Mesmo sendo majoritariamente rural, Idaho é um bom comparativo com o Oregon, já que Boise (a maior cidade no Idaho) seria a segunda mais populosa cidade no Oregon.

É bom lembrar que nem a lei do Idaho, nem a lei de Oregon permitem que um ciclista atravesse um cruzamento em alta velocidade. Cruzar direto por uma placa de “pare” é perigoso, inconsequente e desrespeitoso com o direito dos outros. Na lei do Oregon, a multa para tal infração seria ainda mais alta do que no Idaho.

Por fim alguns exemplos como a lei do Idaho funciona na prática. Em resumo, o ciclista só tem o direito de “parar em movimento” quando o cruzamento está livre de pedestres e ciclistas e ele tem a preferência. Em todos os casos, a placa para passa a significar “dê a preferência”.

A lei do Idaho iria simplesmente assegurar que usar uma bicicleta continue tão seguro quanto é agora, mas mais eficiente, prazeroso e portanto mais viável com um meio de transporte limpo, saudável e de baixo impacto.

(*) A maioria dos motoristas norte-americanos aprende a dirigir na escola e portanto é comum que mesmo ciclistas tenham noções de direção ou até uma carteira de habilitação.

A abordagem dinamarquesa foi ainda mais eficiente, com uma “onda verde” que assegura que o ciclista que mantiver uma velocidade constante não irá parar nunca no principal eixo cicloviário de acesso ao centro de Copenhague. Confira o post “Prioridade absoluta para bicicletas“.

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Pedestres e comércio

Associações de lojistas e comerciantes em geral tendem a ser contra iniciativas que abram espaço para a livre circulação de pedestres em detrimento do fluxo motorizado. Felizmente acabam sendo sempre maravilhosamente desacreditados em suas previsões e medos iniciais.

Calçadões e ruas exclusivas para pedestres tendem a atrair mais pessoas e a instalar um ambiente favorável para vendas. Até porque somente estacionamentos tem no fluxo de automóveis a sua atividade final. Pessoas são as responsáveis por comprar, comer e consumir diversão.

Cada rua a mais para o trânsito exclusivos de pessoas é uma benesse para as cidades e ajuda a estimular a demanda que precisamos no espaço urbano. A demanda por qualidade de vida e convívio humano, onde é importante estar e não cruzar em alta velocidade rumo a um destino distante em que as ruas não passam de um borrão indistinto de prédios.

Ruas para pedestres são mais do que “centro de compras a céu aberto”, por serem de livre circulação para todos. Elas fazem mais sentido com uma rede de transporte que dê suporte ao grande afluxo de pessoas. Até porque a valorização do espaço tende no longo prazo a inviabilizar o uso de terrenos como espaço para estacionamento, ou ao menos desencorajam viagens motorizadas pelo alto custo para estacionar.

A foto que ilustra esse post é na mesma rua da foto abaixo. É a Calle Fuencarral em Madrid que antes era assim:

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Google StreetView

As imagens de Madrid foram retiradas de um post no blog português “Menos um carro” que trata de uma reportagem no New York Times. O jornal norte-americano menciona como o comércio da Calle Fuencarral se tornou mais vigoroso depois que as pessoas puderam circular livremente. Bom para as grifes internacionais e as pequenas lojas de estilistas instaladas lá. Tudo partindo da premissa de que as pessoas tendem a frequentar mais um lugar onde podem caminhar com conforto e tranquilidade, sem se esbarrarem umas nas outras.

O Brasil também tem o exemplo pioneiro de Curitiba, cidade modelo nos anos 1970 e que hoje enfrenta enormes desafios pelo crescimento demográfico que sofreu. Fruto, em grande parte, da qualidade de vida de parques, o primeiro calçadão do Brasil e um sistema inteligente de transporte. Um trinca de boas iniciativas urbanas que atrairam pessoas e novos negócios para a cidade.

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Manual para bicicletas no contrafluxo

O conceito de que contramão é uma prerrogativa de automóveis. Já está em aplicação na Inglaterra, depois de diversos projetos pilotos, um programa que visa adequar o espaço viário à bicicleta. Ao invés de reprimir os ciclistas que seguem pelo caminho mais curto, o departamento de trânsito federal (Department for Transport – DfT) encoraja a sinalização de faixas exclusivas para a bicicleta seguir em segurança no que seria “contramão”.

A medida é bastante simples e felizmente já está prevista no código de trânsito brasileiro. Na Inglaterra, é o Departament for Transport (DfT) que define políticas públicas nacionais para a mobilidade cargas e pessoas. Desde navios ao trem-bala, passando, claro, pelas bicicletas. A seguir um tradução da contextualização do documento produzido pelo DfT para facilitar a implementação de pistas para bicicletas no contrafluxo.

Ruas de mão única podem resultar em caminhos mais longos e arriscados para o ciclistas, com mais cruzamentos a serem negociados. Uma maneira eficiente de resolver esse problema é através da introdução de medidas que permitam ao ciclista trafegar em ambas as direções em uma rua de mão única.

As experiências de outros países europeus resultaram em uma gama maior de opções para bicicletas no contrafluxo em relação ao que já foi implementado no Reino Unido até hoje. A experiência alemã é especialmente relevante. Lá o uso da bicicleta aumentou nos últimos anos em comparação ao uso relativamente modesto que se fazia antes. Com isso, os motoristas aprenderam a antecipar situações e acomodar o número crescente de ciclistas.

Toda a legislação é uma convenção que visa atender a necessidade da maioria. A lei brasileira foi feliz ao permitir que os órgãos de trânsito locais permitam que a bicicleta siga no contrafluxo. O exemplo europeu ajuda a mostrar que não se trata de um “jeitinho brasileiro”, para adequar as ruas aos ciclistas que não respeitam leis. Muito pelo contrário, medidas que facilitem os deslocamentos em bicicleta com segurança a cada dia se tornam mais comuns e ajudam a colocar mais bicicletas nas ruas.

A tarefa de readequar nossas cidades para deslocamentos de pessoas é complexa e demanda tempo e conhecimento técnico. Mas é sempre bom lembrar que novos desafios requerem novas ferramentas. Além é claro, de não podemos solucionar um problema com a mesma lógica com que ele foi criado.

Leia mais sobre Bicicletas no Contrafluxo, em inglês.
Contra-Flow Cycling – Cycling England
Contra-Flow Bike Lanes – NACTO National Association of City Trasnportation Officials
Contraflow Cycling – ETSC European Transport Safety Council

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Pedestres para cidades saudáveis

Todos os urbanóides vivem em um bairro. As pessoas não vivem em uma cidade, uma região metropolitana, uma estado ou um país. A vida urbana se constrói nos bairros e em suas ruas e avenidas.

Uma cidade só é saudável e viva quando tem bairros saudáveis em que as pessoas podem atender suas necessidades cotidianas a pé. Ir ao banco, a um restaurante, ao mercado ou a padaria.

O raio de ação do pedestre é limitado e por isso um bom bairro tem de ser minimamente denso. Bairros dormitórios ou a urbanização aos moldes de “cidades jardim” são falhas por não levar em consideração as distância e necessidades cotidianas. Sofrem com isso a população de baixa renda, isolada em conjuntos habitacionais e os mais abastados, isolados do restante da cidade em bairros protegidos.

Enquanto as cidades não caminham para retornar a sua função original de habitats densos para seres humanos, resta a quem tem a chance, escolher viver em bairros que congreguem facilidades para os pedestres.

A aventura humana se traça por linhas tortas e os passos lentos que nos possiblitaram dominar o planeta são os mesmos que tem de ser olhados com mais atenção. Esse já é o discurso da nova mobilidade e pode ser a bandeira dos movimentos ambientalistas para as cidades. Afinal, todos precisamos da Amazônia e outros ecossistemas naturais. Ainda que a maioria de nós não viva na selva, mas nos gigantescos zoológicos humanos que são as cidades.

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