Um retrato do cicloativismo no Brasil

O cicloativismo no Brasil segue ainda necessário, mas cada vez mais tem se mostrado capaz de ser mais do que uma atitude de um nicho de pessoas em busca do confronto e atitudes pouco efetivas. Organizado em São Paulo pelo BikeAnjo em parceria com oGangorra, o “Papo Reto: Como vai o CICLOATIVISMO no BRASIL?” mostrou através da participação do público a necessidade de “Estratégias de campanha e incidência política” com o que mais faz falta ao “cicloativismo”.

De certa forma, é o desejo quase óbvio que o “ativismo” alcance o status de elemento de ampla conscientização pública e transformação social. Resultados que só são alcançáveis com estratégias de ação e consistência, um trabalho duro e de médio/longo prazo. “Mais ação de rua” e “mais pesquisa” também são demandas mencionadas com algum destaque, mas que certamente se enquadram dentro de campanhas de grupos e organizações em prol da bicicleta.

O Papo Reto pode ser (re)visto na íntegra:

Destaque também para dois documentos fundamentais para entender como vai a promoção ao uso da bicicleta no Brasil lançados durante o evento: – “Mapeamento da Rede Bike Anjo” e “Mapeamento de quem promove a bicicleta no Brasil” Quem promove a bicicleta no Brasil

Foram mapeados 527 organizações e movimentos Brasil afora que se esforçam por um país mais amigo da bicicleta. Transporte Ativo e Ciclocidade mostraram-se dois nódulos de destaque nessa rede nacional em construção. Além é claro do BikeAnjo, UCB, Cicloiguaçu e o Vá de Bike site de referência sobre mobilidade em bicicleta.

O destaque negativo no entanto é que a maioria absoluta das iniciativas ainda está focada em pedaladas recreativas/esportivas. São 245 grupos, ou 31%, que agem dessa forma. Certamente a maneira mais divertida de promover a bicicleta, mas também uma das que tem menor impacto de transformação. Parte do que “mais faz falta”, os grupos que praticam incidência política são apenas 54 no Brasil todo, ou apenas 7% de todas as iniciativas mapeadas. Há ainda um longo caminho a ser pedalado.

Trens, burca e capacete

Uma nova lei estadual em São Paulo quer minimizar o assédio, tão comum, sofrido pelas mulheres nos trens. Sim, a justificativa aborda não a necessidade de punir assediadores ou criar meios de denúncia para coibir crimes. Vale ler a íntegra da justificativa do PL 175/2013 (Lei do Vagão Rosa) aprovado recentemente na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp):

É comum constatarmos reclamações de mulheres que necessitam usar as linhas do metrô e da CPTM de abusos cometidos contra as mesmas, nos trens em horários de grande pico.

Sabemos que, infelizmente, grande parte da população feminina é obrigada a conviver com abusos pela falta de espaço nas composições. Essa situação é constrangedora para quem é obrigada a utilizar esse meio de transporte para ir e vir do trabalho, à escola, e outros, pois na falta de espaço nos vagões, as mulheres não tem outra opção senão “agüentar” esse constrangimento durante todo o percurso, que muitas vezes é longo.

Infelizmente as mulheres não são respeitadas nessas composições nem mesmo quando acompanhadas por filhos menores.

Diante do exposto, tomo a liberdade de apresentar a esta propositura, pois os problemas de assédio às mulheres são comuns e cabe a nós minimizarmos, diante do possível, essa situação.

Toda violência sexual é uma afirmação de poder. O homem, armado de seus “instintos”, ou qualquer outra justificativa estapafúrdia, acredita estar em uma situação de superioridade e para afirmar sua crença, subjuga a mulher pelo uso da força. Há algo em comum entre a violência sexual e a violência do trânsito: reafirmação de poder por quem o detém somada a culpabilização da vítima.

Ao invés de buscar reverter distorções sociais que tornam aceitável a violência, o “vagão rosa” simplesmente reafirma como natural/normal a conduta violenta.

Três frases escritas no texto “Vagão rosa, para não ser encoxada” ajudam a definir o absurdo:

– Comete-se violência sexual contra as mulheres nos trens, segrega-se as vítimas. Seguindo essa lógica, em breve poderia se propor que, nas ruas e espaços coletivos, as mulheres passassem a usar burca. Assim, os homens não seriam “tentados” a cometer crimes sexuais.

(…)

– … a culpada é a vítima. Seja porque usou “roupas sensuais”, seja porque “se expôs” a uma situação potencialmente perigosa.

(…)

– A outra ideia fincada no imaginário de homens (e também de mulheres) é mais interessante. As mulheres é que são a ameaça. (E não aqueles que abusam de seus corpos e de suas almas.) Confina-se, cobre-se, esconde-se aquilo que nos envergonha e aquilo que nos coloca em perigo.

É possível fazer um paralelo claro com a situação da bicicleta do trânsito e o abuso contido no discurso que pune ciclistas:

– Em um trânsito violento, cabe aos mais frágeis (ciclistas, pedestres etc) se protegerem/serem protegidos;
– Cientes de sua fragilidade, os mais frágeis podem ser culpabilizados por se exporem ao risco;
– O ciclista/pedestre na rua precisa estar adequadamente equipado/vestido já que sua simples presença é uma ameaça à si mesmo e ao entorno.

Naturalmente o Estado pode agir em defesa dos mais frágeis com uma certa dose de segregação viária e redução da velocidade dos motorizados. Mas não “por causa dos ciclistas”, tratados como vítimas e algozes da própria situação indefesa. Tornar viável uma circulação nas ruas que seja compatível com a vida humana é justamente corrigir distorções que se tornaram culturalmente aceitáveis ao longo da história.

Da mesma forma o machismo precisa acabar não “por causa das mulheres”, mas também para que o homem possa se libertar da figura do “macho-brucutu” e se permitir “deixar o motor em casa e caminhar”. Ou seja, a humanização das cidades é também uma feminilização das ruas.

A opressão assume várias formas, a mais comum delas é o abuso verbal, e os ciclistas costuma receber alguns. Desde o “vá pra ciclovia/parque”, até o “use capacete/luz/luva”, ou seja, procure seu lugar “seguro”/segregado e proteja-se do abuso dos outros com trajes/acessórios adequados.

Por mais mulheres em mais bicicletas mais vezes e menos opressão nas ruas, nos trens e em qualquer lugar.

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As pedaladas rumo ao futuro de São Paulo

São Paulo é berço do mais ruidoso cicloativismo brasileiro. Em terras paulistanas os ciclistas souberam se fazer ouvir. Criaram a maior massa crítica a tomar as ruas, mas infelizmente ainda não tinham sido alcançados os resultados. Mesmo com uma militância pró bicicleta na ativa há mais de 30 anos.

A cidade pende entre diversas pressões e durante o século XX sucumbiu ao rodoviarismo e a especulação imobiliária predatória. A bicicleta nesse contexto vem para dar um alívio e mostrar novos horizontes aos cidadãos, ao ambiente urbano como um todo e certamente promover uma evolução capaz de influenciar todo o país. O motivo para esperança gira ao redor de um número: 400.

A promessa pública da administração municipal é de ter 400 quilômetros de infraestrutura cicloviária permanente nas ruas e avenidas de São Paulo. Será feito onde é possível, será feito onde é necessário, mas acima de tudo será feito. O desafio para quem promove a bicicleta portanto passa a ser outro, ao invés de lutar contra a inação, finalmente chega a hora do “cicloativismo” paulistano mudar a marcha. Sair do confronto reivindicatório rumo a uma parceria com a cidade e seu corpo técnico encarregado de implementar a infraestrutura para as bicicletas.

Gestores públicos vão e vem periodicamente troca-se o nome de quem comanda a máquina municipal, dos que falam pela cidade e que buscam produzir um legado ao redor de seu nome e/ou para seu partido político. Abaixo de quem se mostra aos jornais está uma massa técnica que permanece acima das indas e vindas ao sabor das urnas. É hora de deixar de lado o cicloativismo e passar a atuar na promoção ao uso da bicicleta.

A bicicleta em São Paulo mudou de marcha

Dois trechos da entrevista do secretário de Transportes deixam claro que mudou o discurso:

A cidade de São Paulo está atrasada em relação a isso [criação de infraestrutura cicloviária], mas vai ficar muito avançada daqui uns dois anos pelo menos. E vai ser uma conquista da cidade, veio pra ficar.

Eu acho que a cidade comportaria pelo menos mil quilômetros de ciclovia. Nós seríamos a cidade no mundo que mais teria ciclovias. Não seria fantástico isso?

Entrevista com Jilmar Tatto – 400km de ciclovias em São Paulo from Vá de Bike on Vimeo.

Entre o discurso e a prática, São Paulo já começa a ver nas ruas uma nova cor, o “vermelho ciclovia”. E as cores oficiais para o viário da bicicleta no Brasil tem se espalhado com uma velocidade de deixar qualquer ciclista no mínimo animado. Pela primeira vez a vontade política em favor da bicicleta pode ser vista nas ruas, com infraestrutura permanente em uma expansão que é acima de tudo uma bandeira política.

A atual administração se apropriou da bicicleta na cidade como veículo de promoção da cidadania e de transformação urbana. Cabe agora a quem já pedala se apropriar das mudanças e adequá-las as necessidades da cidade. Uma missão quase simples, ter mais paulistanos em mais bicicletas mais vezes.

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criando uma demanda que não existe – as bicicletas

Como criar filhos em grandes cidades

Quando chegam os filhos, e até mesmo antes, muda a visão das funções urbanas e as formas também parecem se modificar. É importante saber o caminho e como chegar ao hospital ou casa de parto, o transporte público precisa ser ainda melhor para atender as necessidades de tempo de um transitar que deixa de ser individual e passa a ser atividade para ser exercida em dupla e logo também com um bebê de colo.

A única conveniência no transporte público é o assento preferencial, uma normativa legal que muitas vezes tem pouco efeito prático e que significa apenas a vontade de definir privilégio através de uma lei ao invés de conscientizar a população quanto ao óbvio da gentileza e cortesias urbanas de ceder o lugar a quem dela mais precisa.

Já a mobilidade que deixa de ser individual e passa a ser em dupla implica muitas vezes na submissão a velha carruagem do século XX. A fragilidade de uma mulher grávida logo se transforma na proteção de uma cadeira especial para o transporte de bebês em carruagens. Grande vantagem é que em geral a fragilidade da vida dentro de um automóvel fica claramente demonstrada e a imprudência da juventude ao volante fica por completo soterrada, ao menos na transição para a novidade da maternidade e paternidade.

O ambiente urbano continua rigorosamente o mesmo, mas agora as inclinações das calçadas incomodam a caminhada com o carrinho de bebê, as distâncias urbanas facilmente percorridas a pé por adultos sozinhos ganham outros contornos quando se carrega um pequeno ser tal e qual um canguru no colo. A comércio de bairro passa a ser valioso e a criança força os pais a orientar as compras dos itens de primeira, segunda e até terceira necessidades.

Por fim, mesmo que as crianças sejam francesas e não façam manha (tal como define um livro famoso para neófitos na criação de filhos) é preciso buscar programas e atividades adequadas e aí as dificuldades se mostram por vezes quase cruéis. Criança precisa de espaço, precisa de liberdade enquanto os pais muitas vezes desconfiam que isso seja possível com segurança. Nos anúncios dos jornais estampam-se áreas de lazer, mas feudos confinados geram apenas pobreza de experiência para mentes em desenvolvimento. O inusitado da praça, a harmonia que se constrói no espaço público. Tudo isso é desafiador.

Pião de Tampinha de Detergente, invenção dos subúrbios para uma brincadeira que se vende pronta nos anúncios de televisão

Tal como as crianças pobres da periferia que precisam criar seus próprios brinquedos, os espaços urbanos adequados a circulação e permanência de crianças (e seus cuidadores) são uma grande necessidade do século XXI. Estamos discretamente aprendendo a moldar nosso ambiente de acordo com as necessidades dos humanos, nesse trajeto os “mais pequenos” tem grandes contribuições a nos dar.

A nave que se constrói irá nos transportar para os lugares mais próximos. A praça da vizinhança onde todos podem ir mas que ainda não vê gente que a frequente.

Bicicletas e efemérides

Dia das mães, dos pais, dos namorados, Natal e tantas outras datas comemorativas ou feriados. Amamos efemérides, seja para comemorar, vender mais ou relembrar fatos históricos importantes.

A segunda sexta-feira do mês de maio ficou definida no Brasil como o dia “De bike para o trabalho”, uma adaptação do “Bike to work day”, invenção da Liga de Ciclistas Estadunidenses no ano de 1956, parte das festas do mês da bicicleta.

No Brasil a data é promovida pelos BikeAnjos e por isso tem como grande propósito oferecer aquela dose gratuita, voluntária e colaborativa de bicicleta no dia a dia de quem ainda não pedala sempre.

Escolher uma data em que muitas pessoas farão algo juntas é, pelo amor humano às efemérides, um hábito socialmente difundido. Os estigmas brasileiros tradicionalmente associados a bicicleta: esporte e transporte para quem não tem dinheiro, podem ser desconstruídos na prática. Quem pedala por lazer acaba por descobrir o quanto é mais simples e agradável incluir a bicicleta no dia a dia e livrar-se do stress e dos congestionamentos urbanos.

Mais do que datas, o objetivo é ter mais pessoas em mais bicicletas, mais vezes. Ou, na definição desse cientista, ter uma massa crítica capaz de mudar nosso coletivo coletivo rapidamente.

O objetivo final portanto é “naturalizar” a bicicleta nas cidades e para isso é possível pensar em um número fundamental com base no vídeo acima, 10% da população. Hoje apenas algumas cidades brasileiras apresentam índice próximo a dez porcento das pessoas em bicicleta. Tornar realidade essa massa transformadora requer portanto um esforço coletivo enorme de quem hoje promove a bicicleta.

Ir de bicicleta ao trabalho um dia é certamente uma pedalada à frente no caminho para reconstruir o entorno. Primeiro o neo-ciclista irá perceber o ambiente e irá logo em seguida perceber as inconsistências e inadequações da cidade. Idealmente quem enxerga a bicicleta e sente a importância delas para sua cidade irá ser favorável a mudanças e quem sabe até envolver-se diretamente nas transformações necessárias.

Nem todos irão de bicicleta todas as vezes a todos os lugares, mas uma cidade onde 10% da população usa a bicicleta é uma cidade em que as magrelas são parte da paisagem e por isso mesmo o ambiente urbano torna-se adequado a seres humanos.

Pedalemos pois, ao trabalho, à escola, ao lazer à padaria, ao mercado e aonde mais for da vontade de cada ciclista.