As cidades precisam de mais mulheres em bicicleta

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Mulheres são “espécies indicadoras” da saúde urbana. E em geral, atestam que nossas cidades não são lugares agradáveis e seguros para pedalarmos. Duas considerações costumam demonstrar com clareza o quão distante estamos de incluir as mulheres na mobilidade das cidades. Em geral afirma-se que as mulheres tem mais aversão ao risco do trânsito e que sofrem pressões sociais para estarem impecavelmente vestidas e com o cabelo perfeito no ambiente de trabalho e nos eventos sociais.

Os dois pontos acima apenas arranham, bem de leve, o machismo estrutural que ainda nos oprime. Oprime as mulheres com bastante clareza e reforçam papeis que “cabem aos homens” que apenas reproduzem comportamentos sociais sem questionar e tornam-se incapazes de lidar com o mundo feminino de maneira mais saudável. Um vídeo recente mostrou as dificuldades em simplesmente ser mulher e compartilhar o espaço urbano com homens. O papel de opressor das figuras masculinas está claro e o desconforto no caminhar mostra com clareza o quão desagradável pode ser caminhar na rua.

Ver os exemplos em vídeo ajuda a criar um pouco de empatia dos homens pelas mulheres e deixam claro que cantadas nas ruas jamais são capazes de serem interpretadas como galanteio. Os desafios em combater o machismo ainda continuaram a ser necessários, mas entender as necessidades femininas nas cidades tem o potencial de refazer o caminho da independência que a popularização da bicicleta trouxe às mulheres ainda no século XIX.

Razões porque as mulheres pedalam menos do que poderiam

Segurança é certamente o aspecto mais repetido pelas mulheres e sobre as mulheres em relação ao uso da bicicleta no ambiente urbano. Naturalmente toda iniciativa que puder tornar nossas ruas mais seguras para qualquer gênero é uma necessidade. Ainda assim, certamente a crença de que as mulheres são mais vulneráveis e medrosas continuará a ser discutido entre os homens que pedalam.

Como encaixar a bicicleta no cotidiano é um motivo bastante prosaico e que também tem neutralidade de gênero. Vencer essa barreira é outra iniciativa para conseguir mais pessoas pedalando e uma estratégia centrada nas mulheres irá trazer ainda mais ciclistas para a ruas. Desvincular a bicicleta da lógica do esporte, o que envolve a possibilidade de pedalar com tranquilidade, sem pressão pela velocidade é questão de primeira necessidade. A lógica do calor, do suor etc, em geral fica de lado quando a pessoa enfrenta o transporte público, caminha ou até mesmo utiliza uma carruagem motorizada sem condicionador de ar em um dia de verão.

A pressão social por “estar impecável” atinge muitas mulheres (com exceções, naturalmente), mas estar “apresentável” para o trabalho é necessidade de qualquer pessoa e que precisa ser equacionada, com trajetos tranquilos e pensados para manter o ritmo da pedalada e minorar o esforço.

Bicicletas feitas para mulheres

Em geral ainda recaem sobre as mulheres necessidades de deslocamento que tornam o uso da bicicleta menos convidativo, situações que em geral precisam ser vistas com mais atenção por parte de fabricantes e comerciantes da indústria ciclística. Quem simplesmente vai e volta do trabalho, sem paradas no mercado ou na escola dos filhos tende a optar com mais facilidade pelas pedaladas e em geral as bicicletas no mercado são adequadas apenas para esse usuário. Repensar as opções de bicicleta é uma pedalada fundamental.

As bicicletas femininas são apenas versões menores com quadros rebaixados e pintura em tons de rosa ou cores “delicadas”. Ter bicicletas adequadas ao biotipo feminino vai muito além de cores e tamanhos. Pedalar é atividade cotidiana e que precisa de veículos adaptados para a realidade das pessoas. Espaço para carga, a possibilidade de transportar crianças e acessórios para o uso urbano da bicicleta como meio de transporte são necessidades que, quando atendidas trarão mais mulheres e, claro, mais pessoas para os pedais.

 

Criar condições para a mudança, sem culpabilizar a vítima

A igualdade de gênero será uma conquista necessária e pela qual ainda temos um longo caminho, mas assim como as mulheres devem lutar por seus direitos, é preciso também incentivar as condições para que esses mesmos direitos sejam garantidos. Nessa lógica, a responsabilidade individual não pode ser o único parâmetro. Incentivar o uso da bicicleta tem de passar longe de culpabilizar as mulheres, ou quem quer que seja, por não pedalar.

Em tradução livre de um texto da Elly Blue:

O que nós precisamos é o mesmo que os homens precisam – ruas que sejam lugares adequados para bicicletas e muita gente pedalando para tornar as ruas ainda mais seguras.

Nós precisamos de bicicletas para levar cargas e crianças e que os homens também as usem.

Nós precisamos deixar a culpa de lado se não formos capazes de simplesmente jogar fora as chaves do carro.

Nós precisamos de líderes e políticos que tenham a coragem de trabalhar pelas mudanças necessárias. E quando eles não o fizerem, precisamos demonstrar nossa indignação.

Nós precisamos de um mundo em que a pedalar não é uma questão de gênero e que seja desnecessário escrever textos como esse.

Nós precisamos saber como demonstrar com clareza o que significa igualdade e o que não significa, em casa, no trabalho e nas ruas.

O direito à cidade é um direito humano básico e deve ser cada vez mais encarado dessa forma. Pedalemos, por mais pessoas em mais bicicletas mais vezes.

Leia mais:

Bicycling’s gender gap: It’s the economy, stupid por Elly Blue
Forget road safety: discover the real reasons normal women don’t cycle por Cathy Bussey
How to Get More Bicyclists on the Road por Linda Baker

Uma vida perdida no trânsito é inaceitável

 

Confiança cega nas máquinas e a ilusão de segurança propiciada por elas transformou nossas cidades em arenas de destruição de vidas. Ruas tornaram-se espaços de opressão dos pedestres quando deveriam ser apenas áreas de circulação. Reverter essa situação passa também pela adoção do conceito de “visão zero”, uma política pública criada na Suécia que busca chegar a zero o número de mortos e feridos com sequelas nos sistemas de trânsito rodoviário.

A perda de qualquer vida no trânsito é moralmente inaceitável, liberdade e mobilidade tem de ser garantidas a todos sem o alto custo em vidas humanas que temos hoje. A solução é bastante simples, é preciso pensar o transporte urbano de pessoas e cargas como algo em que esteja sempre previsto o erro humano.

Basta ter em mente um lema simples: “em qualquer situação uma pessoa pode falhar, o sistema viário não.”

Em uma tradução do site da Iniciativa Visão Zero, é possível entender melhor o conceito.

Sistemas de transporte tradicionais são projetados para alta capacidade e fluxo, com a segurança deixada de lado. Isso significa que os usuários das vias são responsáveis pela sua própria segurança. A Iniciativa Visão Zero tem uma abordagem que é justamente o oposto. A responsabilidade recai principalmente no desenho viário, por reconhecermos a fragilidade da vida humana e sua baixa tolerância frente a forças mecânicas. Em resumo, ninguém deve morrer ou sofrer graves sequelas no trânsito.

Da conceituação à lei
O conceito de visão zero foi criado em 1994 e apenas três anos depois, o Congresso sueco aprovou uma lei de segurança viária que transformou a idéia em política pública. A lei definiu como meta que não aconteçam mortes ou graves sequelas nas vias da Suécia e não deixa espaço para a redução no número de ocorrências viárias para um nível economicamente aceitável. Desde então o país tem adequado seu sistema rodoviário com a abordagem de “visão zero”.

Nova Iorque recentemente também adotou o conceito e lançou seu plano bastante detalhado que aos poucos vem sendo colocado em prática. A mais eficiente e simples medida a ser tomada é reduzir imediatamente o limite de velocidade na cidade. Mais uma vez, quem promove o uso da bicicleta em São Paulo (e no Brasil), mostra que está à frente do seu tempo e de maneira uníssona defende a vida em detrimento da ilusão de fluidez propiciada pela leniência com velocidades incompatíveis com a vida humana.

A promoção de valores éticos em defesa da vida mostra-se com clareza após a leitura de textos editoriais publicados em 2014, mas que atendem a mesma lógica do século XX em que simbolicamente as ruas e a regras de circulação eram focadas apenas no fluxo e num mínimo de preservação de danos dos condutores de motorizados contra eles mesmos, cabendo as vítimas migalhas e a defesa contra a opressão. Leia o editorial “Direitos sem deveres” caso tenha paciência de viajar ao passado do pensamento urbano.

Saiba mais:

Iniciativa Visão Zero da Suécia
Visão Zero em Nova Iorque

São Paulo, uma cidade que não está para brincadeira

Foi com foguetório, pompa e circunstância que na noite de quarta-feira 27 de março de 1968, São Paulo comemorou a última viagem de bonde na cidade. Um grande cortejo de 20 veículos seguiu pelos trilhos, parte deles assentados sobre um mato baixo. Liderando a festa, junto ao primeiro motorneiro iam o prefeito, o governador e diversas autoridades, além do povo que seguia atrás e lotava os “camarões” que faziam a linha Instituto Biológico – Santo Amaro.

Teve champanhe para celebrar o progresso e discurso otimista garantindo que Santo Amaro não ficaria desassistida de transporte com a criação de novas avenidas onde antes repousavam as linhas. Na mesma página de jornal que relatou a comemoração, uma grande propaganda de um fabricante de carrocerias para ônibus. Não foi coincidência. O sucateamento do transporte sobre trilhos em São Paulo e a promoção dos ônibus à diesel e dos automóveis foi plano de décadas.


A melancolia desse post merece um samba da década de 1940: “E o 56 não veio”:

Agora, passados quase 50 anos desde o ocaso dos “veículos leves sobre trilhos” (VLTs) é quase natural condenar o retrocesso para a cidade de um plano bem elaborado e financiado de asfaltamento e abertura de vias para sua majestade o transporte sobre pneus passar. Um erro histórico sem dúvida, mas que poucos lutaram para reverter e que atendia a interesses e a uma visão de cidade muito comum e celebrada à época.


O bonde de Santo Amaro

Vivemos outros tempos, mas ainda está em disputa qual o modelo de cidade teremos nas próximas décadas. Há quem simplesmente defenda o status quo e os privilégios da mobilidade individual motorizada sobre pneus e também quem defenda a supremacia das pessoas sobre os motores. O progresso industrial e sua ética de expansão das máquinas como valores supremos transformaram as cidades e seus espaços públicos de circulação em uma grande massa asfáltica.

Mudou tanto a visão sobre transporte que o senso comum ainda acredita que só existe mobilidade sobre ruas e avenidas de uso exclusivo para motorizados ou nos subterrâneos do metrô. Dentro dessa lógica, qualquer forma de se locomover que se baseie no esforço humano é subversiva. A alegria, simplicidade e o prazer quase infantil de pedalar são uma afronta contra um mundo movido a óleo e que parece pulsar através de engrenagens.

São Paulo parou de brincar em nome daquele progresso tão bem planejado e promovido desde o século XX. Um progresso filho do planejamento e da engenharia de tráfego automotivo que no fim das contas fez a cidade locomover-se mais devagar do que nos tempos dos bondes puxados a burros.

Felizmente há sempre caminhos a serem construídos, ou desbravados. Acreditamos (e somos muitos) que a bicicleta em São Paulo e em todas as cidades do mundo é uma grande indutora de mudanças. É o veículo perfeito para a transição de um modelo de cidade que se assenta sobre o petróleo do asfalto enquanto queima os óleos do ouro negro simplesmente para mover pessoas em pesadas carcaças motorizadas.

O futuro já chegou e veio pedalando uma simples bicicleta. Trouxe na bagagem uma urbe pensada para pessoas, onde o mais importante não é como, mas quem se desloca. Por meio das deliciosas e tão antigas magrelas que irá ser repavimentado um legado de futuro urbano.

Quando uma bicicleta ganha as ruas, surgem necessidades que estavam esquecidas, a maior delas é que na condução estará sempre uma frágil vida humana. Ao se multiplicarem os pedalantes, fica exposto ao mesmo tempo nossos graves problemas urbanos e a solução. Cada ciclista na rua deixa claro que o modelo de urbanismo do século XX nos trouxe à beira do fracasso urbano, mas esse mesmo ciclista lembra a todos que basta despir-se das carcaças de aço e recriar uma nova cidade que já é possível hoje.

Essa é Utrecht em uma manhã de uma quarta-feira qualquer. Uma cidade de cerca de 300 mil habitantes, parte da grande conurbação holandesa de Randstad com quase 7 milhões de pessoas.

Nós não somos holandeses, não somos dinamarqueses e nenhuma cidade se compara a qualquer outra. Mas o fato é que o paraíso ciclístico com VLT que se vê no vídeo nasceu de uma premissa central, era preciso priorizar o deslocamento das pessoas. Primeiro com a retomada dos espaços públicos de circulação e permanência, aos poucos com todas as transformações advindas dessa premissa.

Pedalemos!

Textos de referência:

A morte do bonde – Revista História Viva
Foram-se os bondes – O Estado de S. Paulo de 28 de Março de 1968 – pág. 19
Brincando de ciclovias – Editorial O Estado de S. Paulo
Nós não somos dinamarqueses – Sustentável é pouco
Em busca do urbanismo perdido – Aliás – OESP
O último bonde em Santo Amaro e São Paulo
Santo Amaro: eixo histórico dos transportes, trem, bonde e metrô, no mesmo itinerário – São Paulo, minha cidade

As pedaladas rumo ao futuro de São Paulo

São Paulo é berço do mais ruidoso cicloativismo brasileiro. Em terras paulistanas os ciclistas souberam se fazer ouvir. Criaram a maior massa crítica a tomar as ruas, mas infelizmente ainda não tinham sido alcançados os resultados. Mesmo com uma militância pró bicicleta na ativa há mais de 30 anos.

A cidade pende entre diversas pressões e durante o século XX sucumbiu ao rodoviarismo e a especulação imobiliária predatória. A bicicleta nesse contexto vem para dar um alívio e mostrar novos horizontes aos cidadãos, ao ambiente urbano como um todo e certamente promover uma evolução capaz de influenciar todo o país. O motivo para esperança gira ao redor de um número: 400.

A promessa pública da administração municipal é de ter 400 quilômetros de infraestrutura cicloviária permanente nas ruas e avenidas de São Paulo. Será feito onde é possível, será feito onde é necessário, mas acima de tudo será feito. O desafio para quem promove a bicicleta portanto passa a ser outro, ao invés de lutar contra a inação, finalmente chega a hora do “cicloativismo” paulistano mudar a marcha. Sair do confronto reivindicatório rumo a uma parceria com a cidade e seu corpo técnico encarregado de implementar a infraestrutura para as bicicletas.

Gestores públicos vão e vem periodicamente troca-se o nome de quem comanda a máquina municipal, dos que falam pela cidade e que buscam produzir um legado ao redor de seu nome e/ou para seu partido político. Abaixo de quem se mostra aos jornais está uma massa técnica que permanece acima das indas e vindas ao sabor das urnas. É hora de deixar de lado o cicloativismo e passar a atuar na promoção ao uso da bicicleta.

A bicicleta em São Paulo mudou de marcha

Dois trechos da entrevista do secretário de Transportes deixam claro que mudou o discurso:

A cidade de São Paulo está atrasada em relação a isso [criação de infraestrutura cicloviária], mas vai ficar muito avançada daqui uns dois anos pelo menos. E vai ser uma conquista da cidade, veio pra ficar.

Eu acho que a cidade comportaria pelo menos mil quilômetros de ciclovia. Nós seríamos a cidade no mundo que mais teria ciclovias. Não seria fantástico isso?

Entrevista com Jilmar Tatto – 400km de ciclovias em São Paulo from Vá de Bike on Vimeo.

Entre o discurso e a prática, São Paulo já começa a ver nas ruas uma nova cor, o “vermelho ciclovia”. E as cores oficiais para o viário da bicicleta no Brasil tem se espalhado com uma velocidade de deixar qualquer ciclista no mínimo animado. Pela primeira vez a vontade política em favor da bicicleta pode ser vista nas ruas, com infraestrutura permanente em uma expansão que é acima de tudo uma bandeira política.

A atual administração se apropriou da bicicleta na cidade como veículo de promoção da cidadania e de transformação urbana. Cabe agora a quem já pedala se apropriar das mudanças e adequá-las as necessidades da cidade. Uma missão quase simples, ter mais paulistanos em mais bicicletas mais vezes.

Leia mais:

Cidade de São Paulo comportaria mais de 1000 km de ciclovias, afirma secretário de Transportes – Vá de Bike
criando uma demanda que não existe – as bicicletas