Mobilidade urbana, um direito básico

Foi somente no século XX que as cidades perderam seu caráter de acomodar com segurança uma diversidade de meios de deslocamento. Nas palavras do historiador Peter D. Norton em seu livro “Fighting Traffic”:

Antes que as cidades norte americanas pudessem ser fisicamente reconstruídas para acomodar automóveis, as ruas tiveram de ser reconstruídas socialmente como espaços nos quais o carro pudesse ser aceito. Até então, as ruas eram consideradas espaços públicos onde condutas que pudessem colocar em risco ou obstruir os outros (inclusive os pedestres) eram consideradas desrespeitosas. O direito dos motoristas era portanto frágil, sujeito a restrições que inviabilizavam as vantagens de ter um carro.

Ruas como espaço para o fluxo motorizado são uma construção subjetiva do século XX, algo perfeitamente reconfigurável dentro de um novo conceito político que se desenha no século XXI. Esse redesenho de nossas cidades tem de ser portanto construído antes de tudo nas mentes antes de se materializar fisicamente.

Essa reconfiguração mental passa por enxergar para além da forma atual das cidades e seus usos. Medidas de incentivo e valorização de pedestres e ciclistas são o caminho, mas não existe um roteiro definido. Apenas diversos primeiros passos que busquem deixar claro que cidades são para pessoas e qualquer objeto ou estrutura física serão sempre coadjuvantes.

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Pedestres e comércio

Associações de lojistas e comerciantes em geral tendem a ser contra iniciativas que abram espaço para a livre circulação de pedestres em detrimento do fluxo motorizado. Felizmente acabam sendo sempre maravilhosamente desacreditados em suas previsões e medos iniciais.

Calçadões e ruas exclusivas para pedestres tendem a atrair mais pessoas e a instalar um ambiente favorável para vendas. Até porque somente estacionamentos tem no fluxo de automóveis a sua atividade final. Pessoas são as responsáveis por comprar, comer e consumir diversão.

Cada rua a mais para o trânsito exclusivos de pessoas é uma benesse para as cidades e ajuda a estimular a demanda que precisamos no espaço urbano. A demanda por qualidade de vida e convívio humano, onde é importante estar e não cruzar em alta velocidade rumo a um destino distante em que as ruas não passam de um borrão indistinto de prédios.

Ruas para pedestres são mais do que “centro de compras a céu aberto”, por serem de livre circulação para todos. Elas fazem mais sentido com uma rede de transporte que dê suporte ao grande afluxo de pessoas. Até porque a valorização do espaço tende no longo prazo a inviabilizar o uso de terrenos como espaço para estacionamento, ou ao menos desencorajam viagens motorizadas pelo alto custo para estacionar.

A foto que ilustra esse post é na mesma rua da foto abaixo. É a Calle Fuencarral em Madrid que antes era assim:

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Google StreetView

As imagens de Madrid foram retiradas de um post no blog português “Menos um carro” que trata de uma reportagem no New York Times. O jornal norte-americano menciona como o comércio da Calle Fuencarral se tornou mais vigoroso depois que as pessoas puderam circular livremente. Bom para as grifes internacionais e as pequenas lojas de estilistas instaladas lá. Tudo partindo da premissa de que as pessoas tendem a frequentar mais um lugar onde podem caminhar com conforto e tranquilidade, sem se esbarrarem umas nas outras.

O Brasil também tem o exemplo pioneiro de Curitiba, cidade modelo nos anos 1970 e que hoje enfrenta enormes desafios pelo crescimento demográfico que sofreu. Fruto, em grande parte, da qualidade de vida de parques, o primeiro calçadão do Brasil e um sistema inteligente de transporte. Um trinca de boas iniciativas urbanas que atrairam pessoas e novos negócios para a cidade.

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Massa Crítica ou Falha Crítica?

Vamos deixar uma coisa clara. Embora não sejamos ativistas que carregam faixas e apitos, achamos que o ativismo é fantástico. Damos todo nosso apoio, especialmente ao ativismo que busca criar uma cultura da bicicleta, como há em Copenhague e outras cidades do mundo.

Apenas sentimos necessidade de fazer o papel de advogado do diabo em relação ao movimento Massa Crítica (Bicicletada).

É um conceito brilhante. Democracia por princípio. Celebração, sim. Mesmo que haja apenas um par de dezenas de ciclistas. Gostaríamos de pedalar em Budapeste, com dezenas de milhares de outras bicicletas. Seria excitante. Também achamos que movimentos como a Pedalada Pelada (Naked Bike Ride) abordam questões importantes, e com humor.

Não aprovamos a repressão policial exagerada que ocorre em várias cidades, mas também não temos admiração por aqueles ciclistas que são agressivos com os motoristas. A democracia torna-se anarquia. Da mesma forma, não apreciamos a atitude elitista de muitas pessoas do movimento ambientalista. Aquelas que olham com desprezo para os motoristas.

Entendemos que o objetivo da Massa Crítica é chamar a atenção para a necessidade de uma cultura da bicicleta e todas as vantagens ambientais inerentes a isso. O que é muito bom. Portanto, um dos principais objetivos é fazer com que mais pessoas usem suas bicicletas. Por qualquer motivo: sustentabilidade, redução da dependência do petróleo, melhor saúde para seus concidadãos.

Se for assim, a Massa Crítica funciona? Não temos certeza. Passados 15 anos, existe alguma cidade que alcançou melhorias suficientes para aproximá-la da cultura da bicicleta que se vê em muitas cidades européias?

Uma Alternativa Simples

Nós sabemos que vemos uma simples alternativa. Um caminho mais fácil. E se todos aqueles ciclistas da Massa apenas pedalassem suas bicicletas todos os dias? Com roupas normais, como pessoas normais? Tal como os milhões de cidadãos dos países ao norte da Europa.

O que poderia acontecer?

Conheça nosso personagem – o Sr. Motorista. Ele dirige de casa para o trabalho e vice-versa, como sempre faz. Ouvindo a mesma estação de rádio. Mesma rota, com pequenas variações. É o que ele faz.

É um cidadão mediano numa sociedade do automóvel. Como a grande maioria, ele não é um ativista ambiental e nunca, jamais será.

Sr. Motorista olha para fora das janelas de seu carro enquanto vagarosamente se move no trânsito. O que ele pensa quando vê um ciclista radical, vestindo lycra, numa bicicleta especial, indo acelerado em seu caminho no bordo da pista?

Sr. Motorista, no tráfego da manhã, poderia pensar, “Hmm. Eu poderia ir pedalando para o trabalho, também …”

Contudo, ele não vai se ver refletido na imagem. Ele estará vendo um membro de uma sub-cultura, muitas vezes militante. Ele verá alguém que normalmente chama de “ambientalista” – um rótulo que não é positivo em muitas culturas. Ele vai ver uma pessoa vestindo um uniforme quase oficial – o Sr. Motorista não tem nada em seu armário que se assemelha aos apetrechos do ciclista – e ele verá uma bicicleta muito distante daquelas que já teve algum dia.

Ele vai perceber que, para andar de bicicleta, teria de se infiltrar em uma sub-cultura povoada por indivíduos muito diferentes dele mesmo. Teria que investir em equipamentos e roupas. Pior de tudo, ao pedalar, o Sr. Motorista veria a si mesmo levantando uma bandeira.

Sr. Motorista, como a maioria das pessoas, não quer levantar bandeiras. Ele só quer viver sua vida, não quer subir em palanques ou entrar para um grupo de ativistas ruidosos. Ele sabe que o meio-ambiente é uma questão importante. Ele conhece os fatos. Mas ele é apenas um cidadão comum e sempre será. Ele só pensa que pedalar de bicicleta para o trabalho seria agradável, saudável e mais rápido do que dirigir seu carro. Mas a idéia é rapidamente descartada.

Quando o Sr. Motorista fica preso no trânsito a caminho de casa por causa de um protesto/demonstração/celebração de bicicleta, isto não o convencerá mais facilmente a optar pela bicicleta. Ele, mais do que sempre foi, vai querer distância desta idéia. O cidadão comum não tem muito respeito por este tipo de ativismo. Gostaríamos que tivesse, mas não tem. Ele só vai ficar extremamente irritado.

Boa metáfora

Agora vamos imaginar o Sr. Motorista sentado no trânsito e olhando de relance para fora da janela. Ele Vê um sujeito passando. Uma pasta presa com elásticos no bagageiro traseiro. Vestindo um terno. Sem estar voando como se fosse quebrar recordes, apenas pedalando firme. O único equipamento é uma tira prendendo as pernas das calças e, se quiser, um capacete. Numa boa, sem desafiar o tráfego motorizado, apenas indo no fluxo. A bicicleta do homem parece aquela que está na garagem do Sr. Motorista.

Então o Sr. Motorista vê uma mulher passar por ele. Numa bicicleta confortável e charmosa. Sua pasta na cestinha, decorada com flores de plástico. A cesta, e não a pasta. Ela está usando uma saia e sapatos estilosos. Ouvindo seu iPod. Num ritmo sereno e constante.

Então, ousamos supor, o Sr. Motorista pensaria: “eu não me importaria de andar de bicicleta para o trabalho. São apenas 15 km. Esse cara se parece comigo. Mesma roupa. Mesma bicicleta. E essa mulher faz isso parecer tão fácil…”

Sr. Motorista veria a si mesmo no reflexo desses ciclistas. Ele iria perceber que, para pedalar ao trabalho, teria apenas que tirar sua bicicleta para fora da garagem, comprar uns clipes de perna e, se ele gostar, um capacete. Em muito menos tempo do que gasta para dirigir ao trabalho, ele estaria pronto para pedalar.

Ele não teria que levantar bandeiras. Ele seria apenas outro ciclista indo para o trabalho. Em harmonia. Ele sentiria como se estivesse fazendo algo de bom para si e para o planeta. Sem ter que gritar palavras de ordem para fazer isto.

Xis da questão

Aqui está o busílis. Todos aqueles que são muito entusiasmados em ajudar a aumentar o uso da bicicleta em áreas urbanas, compreendem como o cidadão comum pensa. Ajude o cidadão comum a fazer parte do grupo. Não o coloque contra a parede, destacando as diferenças entre você e ele. Estamos todos juntos nessa.

Ativistas são os primeiros da fila e todo louvor a eles, mas é o cidadão comum e seus companheiros que vão salvar o planeta no final das contas, se lhes for dada a oportunidade.

E, quando aumenta o uso da bicicleta, diminuem os acidentes com bicicleta e as cidades não terão escolha a não ser investir em infra-estrutura para bicicletas. Se você construir, elas virão.

Faça com que pedalar pareça fácil e o caminho rumo a uma cultura da bicicleta também o será.

Essa é a nossa opinião a respeito. Sinta-se livre para mandar seu comentário.

Esse texto é uma tradução de Critical Miss or Critical Mass?

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Construir, a parte fácil

Brasília foi desenhada na prancheta, fruto da mente criativa de Lúcio Costa e seu “plano piloto”. Mas tão rígida nos planos, a nova capital federal não levou em conta o erro, o tempo e as incertezas. Todas as cidades não planejadas do mundo contém o erro ao longo de muitos anos e Brasília só teve 50 anos de interferências humanas não previstas.

Nem mesmo o mais “planificado planejamento” foi capaz de prever que ao invés de 500.000 a cidade fosse ter 2 milhões e 600 mil habitantes. Cercada de invasões e habitações informais das cidades satélites, Brasília reforça a distância física entre moradia e emprego, entre ricos e pobres. Niemeyer foi gênio da poesia com concreto, mas uma cidade não pode contar apenas com aço, asfalto, cimento e cabos de força.

A nossa capital federal, só é mesmo cidade por suas pessoas que garantem que toda a beleza e inovação arquitetônica dos traços de Niemeyer permaneçam firmes e bem cuidados. As rodovias que ligam a cidade e amplitude do horizonte do planalto central garantem a beleza da cidade construída, mas o desafio é garantir que esse espaço possa ser para as pessoas.

Cada superquadra é um pouco uma célula urbana quase autosuficiente, com comércio e moradia. No entanto a mesma amplitude que fascina o visitante é a que desincentiva a caminhada e a presença das pessoas nas ruas. A compartimentalização nunca fez bem as cidades, como diagnosticou Jane Jacobs.

Mesmo as vias expressas que funcionam como rodovias não foram capazes de abrigar o fluxo sempre crescente de veículos motorizados particulares e a cidade que nasceu sem semáforos hoje já convive com o malfafado congestionamento motorizado. Sinal do triunfo da mobilidade individual sobre o transporte coletivo, grande falha da capital federal.

Apesar de tudo, Brasília é o reflexo de um Brasil do passado que mirou longe rumo ao futuro. Não foi erro crasso, nem retumbante sucesso. Foi apenas um rascunho que virou maquete que ergueu-se em meio a poeira do cerrado para ser o símbolo de um Brasil que queria ir além do litoral atlântico, onde ainda vive a maioria absoluta dos brasileiros. Acabou sendo apenas uma cidade brasileira diferente e igual a todas as outras e marcadamente fruto de um tempo histórico em que o homem acreditava-se maestro do mundo.

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Para vender a bicicleta

Influenciar comportamentos é ao mesmo tempo o maior desafio e ambição da publicidade. O exemplo húngaro é maravilhoso por mostrar a bicicleta para não ciclistas e sempre de maneira positiva.

Trata-se de buscar o caminho que os publicitários chamariam de “aspiracional”. Apesar da força da Massa Crítica na Hungria, o foco vai muito além de “nichos” ou de “tribos” de ciclistas. A idéia é mais bicicletas para mais pessoas mais vezes.

Simples, como a bicicleta.

Vídeos vistos primeiro no Copenhagenize.

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