Uma comunidade nacional em prol da bicicleta

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Curitiba foi sede do III Fórum Mundial da Bicicleta e cada um dos presentes certamente tem seu próprio resumo do que representou o evento.

Claro que estivemos presentes por lá, com uma “delegação” maior do que em qualquer outro evento similar no passado. Ainda assim, nossas bicicletas sozinhas não fariam o verão. A riqueza do evento foi justamente a presença de pessoas de todo o Brasil e do exterior que foram até lá para dar sua contribuição e mais do que isso, trocar experiências.

Até alguns anos atrás, cada grupo ou indivíduo apaixonado por bicicletas poderia ter a impressão de que estava sozinho em sua cidade. Felizmente a cada ano que passa, constrói-se a certeza de que um movimento verdadeiramente global está focado em promover o uso da bicicleta nas cidades.

Nossa contribuição formal no Fórum foram:

· Apresentação sobre “Bicicletas Públicas no Mundo” e participação na mesa redonda do painel Bicicletas Públicas.

· Workshop “Como posso transformar minha Cidade – Ciclo Rotas Centro

· Barraca com impressos TA/Itaú no feira do evento

· Palestra “A sociedade civil e o futuro das cidades” na plenária Urbanismo.

Para além das formalidades, foi possível rever velhos amigos, fazer novos e fazer uma grande imersão num ambiente ciclístico repleto de pessoas que pedalam na mesma cadência.

Será um Fórum a ser lembrado, um marco de amor e carinho pelas magrelas.

E que venha o IV Fórum Mundial da Bicicleta, Medellin 2015.

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A construção de um plano cicloviário

Os impactos da bicicleta na percepção das cidades pelos ciclistas são quase óbvias. O desafio está em alastrar a mudança na visão do ambiente urbano para pessoas que por acaso ainda não pedalam.

Uma das formas, simbólicas, está na sinalização do asfalto. Um espaço que foi simbolicamente promovido como pertencente as máquinas, quando na realidade é apenas uma rua, local de uso múltiplo e cidadão para circular e viver a cidade.

O Rio de Janeiro definiu que o compartilhamento das ruas é meta e tem investido nessa maneira simples de dar um novo significado as ruas para que elas possam voltar a ser das pessoas. Espaço de circulação seguro para seres humanos, sejam qual o meio de transporte que as pessoas optem por utilizar em seus deslocamentos.

São apenas pinturas no asfalto, mas também um primeiro passo para definir como será o asfalto e o espaço das ruas no futuro.

Enquanto isso em São Paulo, os amigos da Ciclocidade pressionam para que bicicletas no asfalto tornem-se o símbolo da mudança de percepção que as cidades precisam. Iniciativa que mostra o valor da representação do espaço das ruas como áreas para bicicletas e, naturalmente, para pessoas. Uma questão quase óbvia, mas que ainda tem um longo caminho até ser senso comum.

Veja o mapa das rotas cicloviárias do Centro do Rio de Janeiro.

A busca por isolamento e o medo das cidades

Quem tem noções de antropologia sabe que evolutivamente, o cérebro humano só é capaz de manter vínculos com até cerca de 150 pessoas. Os que conhecemos pelo nome, sabemos o histórico de vida e que compartilhamos parte de nossa trajetória de vida.

Assim foi a vida humana até uns 10 mil anos atrás quando a agricultura permitiu sociedades mais complexas até culminar com o nascimento do Estado (e das cidades), uma organização comum há apenas uns 5 milênios.

Nada mais complicado para o cérebro humano portanto que lidar com os milhões de habitantes de uma metrópole. Cada rosto é sempre desconhecido e os espaços privados são limitados e pequenos demais, o que inviabiliza a vida comunal para qual nos adaptamos ao longo de milhões de anos de evolução.

Muitas vezes a solução individual para a opressão das metrópoles é a fuga. Ou para uma sociedade alternativa ou, para quem tem condições, um refúgio na praia ou uma casa de campo.

A fuga se dá em massa em qualquer feriado prolongado, férias ou um simples fim de semana de sol. Em busca da paz inexistente nas cidades, seres urbanos empacotam seus pertences, juntam a família e montam na carruagem motorizada adquirida a prestações.

Soluções para o dia a dia das cidades ficam de lado e todo o sofrimento diário se recompensa no lazer longe de casa e da rotina. Mas de certa forma a fuga feita em carruagens espalha o caos e facilita a destruição de mais asfalto para além dos limites das metrópoles.

As sociedades complexas de hoje requerem soluções complexas, o improviso e fuga que é refúgio rotineiro não oferece as respostas que precisamos. O retorno ao passado e a insistência em modelos datados do século XX também são duas impossibilidades.

Restam-nos portanto utilizar as ferramentas à disposição. Um olhar que contemple sabedoria evolutiva e a essência humana com o conhecimento coletivo que nasceu e prosperou desde a descoberta da agricultura e o surgimento das cidades.

Mercados e a cidade

Cidades só existem por conta da compra e venda de produtos e serviços que desde a origem da história urbana esteve presente nas ruas. A cidade industrial nos trouxe também as fábricas e as vilas de operários. Mas na origem, haviam as ruas e os mercados.

No Brasil, felizmente, ainda é possível ter nas ruas um espaço de comércio através das feiras livres. Em horários bem delimitados pelos órgãos de circulação viária, consumidores e vendedores se encontram em meio a frutas, verduras, temperos, peixes, carnes. Além é claro das tradicionais bancas de pastel e caldo de cana que ficam na esquinas, como chamarizes aos que caminham por perto.

O comércio que se faz em espaços particulares, as lojas, supermercados, shopping centers, é quase sempre uma troca entre funcionários e clientes portadores de dinheiro e cartões de crédito.

É possível utilizar cartões em feiras livres, é verdade. Mas o programa de fidelização não passa por mais milhas em companhias aéreas ou em ofertas exclusivas de produtos que você não precisa. Na rua o que vale para ter clientes fiéis é simpatia, amizade. Além é claro do quilo “bem pesado”, da salsinha e cebolinha de graça, uma banana ouro para complementar o café da manhã ou simplesmente a escolha do abacaxi mais bem selecionado.

Semana após semana é possível também conhecer histórias de família, discutir sobre o futebol e acompanhar as mudanças nas barracas ao redor. Vida de feirante começa sempre cedo, com viagens de caminhão até os grandes distribuidores no meio da madrugada que culminam na feira lotada antes do almoço e as ofertas da xepa quando a iminência do horário autorizado de funcionamento faz baixar os preços do que ainda não foi vendido.

As cidades ao redor do mundo tomaram caminhos que as levaram a ter um único uso para as ruas e avenidas. Mas um olhar mais atento é sempre capaz de captar que a diversidade de gentes e usos é o verdadeiro medidor de sucesso em uma cidade.

Que o futuro seja mais diverso e pensado para as pessoas e que as regras rígidas de circulação, desenhadas para manter a fluidez do maior número possível de veículos automotores particulares, sejam repensadas em torno das necessidades urbanas humanas.

Soluções rodoviaristas

O século XX foi o século do automóvel, mas não foi por acaso. Muita gente ganhou muito dinheiro promovendo a (i)mobilidade urbana do transporte individual motorizado.

Um dos maiores exemplos da mentalidade rodoviarista do século passado foi Robert Moses, homem quem gentrificou Nova Iorque e elaborou um plano de “avenidas parque” que “renovou” a metrópole através da expulsão dos mais pobres e abriu caminho para a circulação motorizada em detrimento de qualquer coisa que estivesse no caminho.

Em sua biografia Moses explica a diferença entre construir rodovias em terras vazias e no meio da cidade: “A única diferença é que na cidade há mais pessoas atrapalhando o caminho”.

Foi ainda em 1950 que o ilustre rodoviarista, um anti-urbanista por execelência, elaborou  o “Programa de melhoramentos públicos de São Paulo”. Nesse plano, tal qual um profeta do apocalipse, Moses prevê que o número de automóveis iria aumentar muito. A capital paulista tinha 1 carro para cada 32 habitantes, atualmente essa relação é de 1 para 2.

Como solução de “melhoramento” para a cidade, Moses propôs que São Paulo se livrasse de “bondes obsoletos” e na impossibilidade financeira de se construir metrô subterrâneo, adotasse os ônibus. Uma “solução razoável e econômica”, que seria feita através da aquisição de 500 veículos coletivos e claro, melhorias na pavimentação asfáltica.

Nos anos 1950 (e ainda hoje), quando um rodoviarista afirma que são necessários investimentos em transporte público, pode-se deduzir que esperasse a criação de grandes e formosas avenidas que por acaso também poderão ser utilizadas por ônibus, mas que irão beneficiar e aumentar o número de viagens em veículos motorizados particulares.

Ao longo dos anos São Paulo deixou de lado a hipocrisia rodoviarista e efetivamente foi capaz de direcionar vultosos investimentos em túneis, pontes e viadutos simplesmente para facilitar os deslocamentos motorizados. Minhocão, passagens subterrâneas e a Ponte Estaiada comprovam.

Pela linha de raciocínio de Robert Moses, era preciso se livrar das muitas pessoas no caminho que atrapalhavam a livre marcha do progresso, que no século XX significava automóvel.

Felizmente a noção de progresso rodoviarista já é amplamente contestada. Em Nova Iorque e ao redor do mundo. Afinal, os investimentos em mobilidade individual motorizada ao longo das últimas décadas ajudaram na promoção da decadência dos centros urbanos em nome da expansão para os subúrbios.

O desafio que nos apresenta o século XXI é o embate entre a degradação urbana promovida pelas grandes avenidas e os caminhos para os subúrbios e a reconstrução de uma cidade na escala humana em que haja mais densidade e diversidade.

São Paulo precisa de uma nova semana de 1922 que promova a “antropofagia urbana”, capaz de misturar a periferia pobre com os condomínios de luxo. Ter junto e misturado Alphaville, Cidade Tiradentes que só assim “resolveriam” a Cracolândia.

Vias expressas como a 23 de maio que dêem lugar a ruas de bairro. Tudo interligado por espaços para pessoas e redes de transporte que sejam mais que ônibus lotados para quem não conseguiu financiar um carro.

Nessa nova cidade muitas bicicletas irão circular, e ao invés de expressas vias travadas, teremos velocidades humanas constantes e descongestionadas.

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Textos de apoio:

Transporte coletivo já era ‘urgente’ em 1950 – André Monteiro – Folha de S. Paulo

– O homem que retalhou NY – Sérgio Dávila – Folha de S. Paulo