Crônica das onze horas

Começou com a ciclista toda feliz porque o outono teve saudade e derrubou mais cedo o calor insuportável que andava fazendo na cidade. E porque ela voltou a pedalar depois de duas semanas meio que longe da bicicleta, o que já estava deixando-a um pouco mal humorada.

E por causa de uma certa preguiça, ela resolveu fazer o caminho mais plano, com direito a contravenções, porque pegava uns bons trechos de calçada. E ainda por cima, resolveu pedalar pela primeira vez com o iPod no ouvido, com a trilha de “500 dias com ela”. Sorrindo, se assustou quando percebeu que estava conseguindo pedalar de pé na bike depois de dois meses tentando desajeitadamente.

No caminho, cruzou com uma família na calçada, cheia de filhos pequenos, e enquanto o pai dizia para o filho menorzinho e todo ranhento “cuidado com a bicicleta”, ela reduziu e sorriu para o
menino, que sorriu de volta com a carinha toda melecada.

Dessa vez não foi xingada por ninguém, mas quase teve uma colisão. Um moço de bicicleta vinha pela mesma calçada no outro sentido, e os dois desaleraram, se desviaram e sorriram, e ela quase ficou com pena de não ter batido porque ele tinha um sorriso tão bonito que ela teve vontade de conversar com ele.

Aliás, ela pensou, foram quatro ciclistas hoje. Todos com cara de que iam para algum lugar, de bagageiro com alforge e tudo, o que era incomum naquele percurso dela. E sorriu de novo pela companhia anônima nas ruas.

Chegou no trabalho às onze horas, com o cabelo cheio de pontinhas que ela adorava, que secador nenhum conseguia fazer, só o vento da bicicleta. Sobre a bike, deu bom-dia para sete pessoas, mesmo na cidade cinza, cheia de SUVs (um dos quais quase passou por cima dela um
pouco mais cedo) e policiais e agentes da CET semicegos.

Às vezes a vida podia ser bonita sem razão nenhuma.

Postado originalmente na Gata de Rodas.

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