Confissões de um Atropelador

Era cedo e caí da cama para ir ao trabalho. Uma névoa fria dominava São Paulo e o trânsito de carros estava congestionado. Meu caminho normal é descer até o Rio Pinheiros. Seguia ladeira abaixo pela Cardeal Arcoverde, trânsito parado, cruzei o sinal amarelo no corredor dos carros. Passei a faixa de pedestres e fiquei mais tranquilo.

Ainda com a mão no freio vi um homem entre os carros. Nada que eu pudesse fazer evitaria o choque. Freiando calculei a melhor maneira de acertar minha “vítima” sem machucar a mim, nem a ele nem tão pouco a bicicleta. Não sei se o guidão acertou o corpo dele, mas senti o impacto no meu corpo. O freio deu para reduzir bastante a velocidade e não caí da bicicleta.

Parei menos de um passo depois do pedestre, no meio da rua, culpado e preocupado de te-lo machucado. Ele sorria nervoso, reconheceu o risco de atravessar em meio aos carros em uma cidade como São Paulo, onde um fluxo paralelo sobre duas rodas flui entre os automóveis. Para sorte minha e dele eu estava de bicicleta. Apenas 12 quilos de metal mais 70 kilos de carne e ossos. Seguimos nossos caminhos. Ele rumo à calçada e eu pelo mar de motores parados ou quase parados.

Reavaliando o choque, foi realmente quase engraçado. Estava mais para um esbarrão no meio da rua entre dois seres humanos do que um atropelamento propriamente dito. Ambos soubemos de antemão do choque inevitável, nos preparamos para ele. O pedestre se encolheu eu reduzi a velocidade e joguei meu corpo contra o dele.

Uma cidade é melhor quando as pessoas se cruzam por acidente sem que uma machuque a outra. Assim foi mais esse choque entre humanos.

3 thoughts on “Confissões de um Atropelador

  1. Se todos tivessem esse cuidado…Com o aumento do número de ciclistas nas ruas, esse tipo de acidente será mais comum. Os dois lados têm que se conscientizar.
    abração

  2. Eu também já atropelei pedestre que se arriscou a atravessar com sinal fechado prá ele.
    A diferença é que eu estava a uns 70km por hora, na Av Bias Fortes (BH/MG), descendo, no final do tobogã, a parte mais veloz.
    O choque foi grande, mas deu prá evitar maiores danos.
    De qualquer maneira, ambos aprendemos.

    Eis a grande (monumental) diferença entre carros e bicis.
    Na bicicleta, quanto maior a velocidade, maior o risco para o condutor.
    Ao contrário do carro, onde o condutor fica imune ao choque (e a qualquer outro tipo de contato).

    É por isso que penso que as bicicletas não devem se sujeitar a todas as restrições impostas aos carros.
    É o principal argumento de “porque a legislação para guiar automóveis não se aplica à condução de bicicletas”.
    São meios de transporte muito diversos.

    Ciclo-abraços.

  3. Tenho refletido sobre o quanto as pessoas estão se esbarrando cada vez mais, na mesma proporção que se desculpam cada vez menos…

    Um relato recente: a mãe do meu tio voltou para a UTI depois de um esbarrão entre pedestres. Com 85 anos, super-ativa, mora só na Liberdade e faz tudo a pé ou utilizando transporte público. Semana retrasada, andando na calçada, tomou um encontrão que infelizmente poderá ser fatal. Com alguma osteoporose, caiu e quebrou o femur; foi internada, operada, mas pegou uma infecção hospitalar; foi operada novamente, parada cardíaca de 6 minutos [o máximo são 4], perda de memória por dias; melhorou, saiu da uti, voltou para casa, mas teve sequelas por excesso de medicamentos e atualmente está de volta a UTI. Uma tristeza.

    Se prestarmos atenção, estamos todos, quase sem exceção, literalmente lunáticos, o corpo aqui e a cabeça em outro lugar. O exercício de cidadania começa neste pequeno raio de ação que é o entorno próximo do nosso próprio corpo… envolto em metal ou não, em qualquer velocidade que seja, estes acontecidos são um alerta, que nossas discussões vão [e precisam ir] além das questões sobre relações entre modais… abs

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