Sobre Portas e Janelas

Acordar, fazer o desjejum, se lavar, pegar chave, pasta, celular e carteira. Nos primeiros metros porta afora ele se depara com o primeiro desafio do dia. Não é novidade para ele, mas passa-lhe um rápido pensamento de como aquela parede de carros presos no engarrafamento matinal é chata. Mas não há como fugir. Tem que enfrentar.

Cruza a calçada com cuidado e atento ao trânsito se junta a tantas pessoas em deslocamento. Ao mesmo tempo em que pensa sobre chegar inteiro ao trabalho, já alinha seu veículo no mesmo sentido dos demais… Porém a sua bicicleta é mais estreita e ele se posiciona de frente para o longo e livre corredor à direita dos veículos parados, como uma janela aberta ao lado de uma porta fechada. Prudente, segue numa velocidade compatível, suficientemente lento pra observar que, às 7 da manhã, algumas pessoas já aparentam cansaço, enfado ou irritação e até agressividade. O pensamento o faz sentir um desconforto, aliviado pelo vento no rosto num momento de maior segurança em que imprime maior velocidade.

Ao sinal amarelo uma lenta frenagem, sem trancos e a parada com o pé esquerdo no meio fio, é uma oportunidade para ler as manchetes na banca da esquina.

O sinal abre, mas dois carros demoram alguns segundos para arrancar e, caminho livre à frente, nenhum carro ao lado e aquela parede momentaneamente deixada pra trás o fazem refletir que realmente Deus fecha uma porta e abre uma janela. Cabe a nós saber identificar quando as portas se fecham e quando as janelas se abrem.

Fim da reflexão, ele olha pra frente e segue tranqüilo e seguro para os seus compromissos. Naquele trajeto de poucas quadras, não voltou a ver os carros que lentamente ultrapassou. Pode ser que os veja amanhã no mesmo horário e local, mas ele preferia ter a companhia de outros ciclistas para usar aquela janela.

O sonho de todo o ciclista é estar sempre bem acompanhado.

Vias Humanas

A maneira de se transitar pela cidade tem um impacto direto sobre a maneira de enxergar o tecido urbano. Pode haver uma grande dissociação do entorno, ou um grande envolvimento. Vai depender apenas da força motriz e da velocidade.

Vias expressas são comumente vistas como separadas do restante da cidade. Nada mais natural, pois foram construídas apenas como ligação entre locais e não como um espaço que valesse a pena ser percorrido.

Calçadas e ruas com intenso trânsito de pedestres e ciclistas, no entanto, apresentam uma riqueza de usos que integra os elementos vivos aos construídos.

No âmbito individual, a cidade para quem caminha e pedala apresenta uma dinâmica muito mais interessante. O contato e a interação humanas são um elemento primordial que dá vida aos prédios e vias de circulação de uma cidade.

Aos poucos os caminhos vão ficando mais claros e a promoção da qualidade de vida por meio de uma cidade mais acessível e adequada as pessoas tornar-se há não só uma iniciativa individual, mas pública.

Abaixo o exemplo da área de lazer dominical em Bogotá, na Colômbia. O espaço público formado por quilômetros de avenidas em toda a cidade são tomados por ciclistas, patinadores e pedestres. Uma outra cidade, ainda que somente aos domingos e feriados.

  • Mais:

A Liberdade da Propulsão Humana – Kevin Lynch e outras reflexões sobre a cidade.
Calçadas e Ciclovias (apocalipsemotorizado)

Símbolo de Liberdade

Bicicleta:

A bicicleta aparece freqüentemente nos sonhos do imaginário moderno. Ela evoca três características:

a) trata-se de meio de transporte movido pela pessoa que dele se utiliza, ao contrário de outros veículos que são movidos por força alheia. O esforço individual e pessoal afirma-se, com a exclusão de toda e qualquer outra energia a fim de determinar o movimento para frente;

b) o equilíbrio é assegurado somente pelo movimento para a frente, exatamente como na evolução da vida exterior ou interior;

c) só uma pessoa de cada vez pode montar na bicicleta. Essa pessoa, portanto, faz o papel de cavaleiro único ( o tandem, ou bicicleta de dois assentos, é um outro caso).

Como o veículo simboliza a evolução em marcha, o sonhador monta no seu inconsciente e vai adiante por seus próprios meios, em vez de meter os pés pelas mãos (fr. perdre les pédale – perder os pedais – i.e., descontrolar-se ou confundir-se) por inércia, neurose ou infantilismo. Pode contar consigo mesmo e assumir sua independência. Assume a personalidade que lhe é própria, não estando subordinado a ninguém para ir aonde lhe aprouver.

Nos sonhos, raramente a bicicleta indica uma solidão psicológica ou real, por excesso de introversão, de egocentrismo, de individualismo, que impeça a integração social: ela corresponde a uma necessidade normal de autonomia.

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Foto Zé Lobo

  • Extraído de:

Dicionário de Símbolos. Jean Chevalier e Alain Gheersbrant. José Olympio Editora – 6ª Edição – 1992.

Ciclo-Reunião

No último sábado a Transporte Ativo pedalou pelo Rio de Janeiro com dois ilustres amigos. Um pouco de turismo, um pouco de diversão. Mas acima de tudo, uma reunião de trabalho que mostrou a Cidade Maravilhosa por um ângulo diferente, a visão de ciclista.

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Em destaque na foto Jonas Hagen do ITPD e Robert Chapman da Clinton Foundation. Ambos diretamente envolvidos na promoção de cidades sustentáveis.

O Rio de Janeiro já foi cantado em verso e prosa, mas pedalar por suas ruas e ciclovias é acima de tudo um prazer que mostra a seus moradores e visitantes que a melhor maneira de se vivenciar as maravilhas urbanas é sobre duas rodas movidas a pedal.

Bicicleta, esse vício

Quem pedala sabe os prazeres, os benefícios mas podem haver conseqüências. Um texto bem humorado fala sobre a tentativa de um motorista de livrar um ciclista do vício de pedalar. Afinal quem usa a bicicleta sabe que liberdade, vento no rosto, exercícios físicos constantes e tudo o mais que a magrela proporcionam pode viciar.

Após a chocante revelação de que o calor gerado pelo corpo através de exercícios vigorosos é um grande contribuidor para o aquecimento global, todos nós devemos rever nossos conceitos. É uma grande surpresa para muitos de nós saber que armazenar a energia na gordura humana é um meio precioso de reduzir nosso impacto no meio-ambiente. O governo está introduzindo planos para extrair essa gordura em uma larga escala com programas de lipoaspiração e armazenando-a no subterrâneo, mas todos temos a responsabilidade de reduzir nossa participação na atividade física de risco ecológico.

Olhando para meu estilo de vida, é fácil identificar meu hábito de pedalar como um grande problema. Estou ciente da quantidade de calor que o ciclismo pode gerar mas abandonar isso não seria fácil, então, seis meses atrás eu procurei ajuda com meu amigo Jeremy. Ele não pedala desde criança e é respeitavelmente três rochas mais pesado que eu. Ele agora gerencia uma consultoria que ajuda pessoas como eu a entender e superar nosso déficit ambiental.

Eu expliquei ao Jeremy que eu estava tentado reduzir a milhagem das minhas pedaladas:

“Eu tenho tentado mantê-las em 10 milhas mas elas vêm aumentando gradualmente – às vezes eu faço de 20 a 30 milhas por dia. E os fins de semana são os piores, quando o sol está brilhando eu não consigo resistir em ir às montanhas.”

Jeremy explicou que existiam diferentes abordagens sobre o problema:

“Algumas pessoas conseguem gradualmente reduzir suas pedaladas mas isso não funciona para todos. Pessoas como você precisam parar de pedalar inteiramente em um dia. Sugiro que se livre de sua bicicleta e compre um carro.”

“Comprar um carro? Mas essa é uma maneira tão ineficiente de se andar pela cidade. Você nunca sabe quando vai chegar por causa do congestionamento e problemas com estacionamento. Quero dizer, eu tenho trabalho a fazer e as pessoas dependem que eu chegue a tempo nos meus compromissos.”

“Você deve explicar às pessoas o porquê de você estar fazendo essa escolha. Provavelmente vai notar que são muito compreensíveis.”

“E quanto às longas viagens? Eu uso minha bicicleta dobrável pra chegar na estação de trem e depois consigo trabalhar no trem – é incrivelmente conveniente. Em um carro você apenas tem que ficar sentado lá sem poder fazer mais nada.”

“Bem, eu admito que pode ser difícil combinar uma viagem de carro com outras atividades mas você ficaria surpreso com o quanto pode-se fazer com pouca prática. Falar no telefone, mandar torpedos SMS, fumar, comer, beber – tudo é possível.”

“Mas e quanto ao custo? Quero dizer, carros custam milhares de libras e isso apenas para comprar um. Depois tem todos os custos de rodagem, seguro e impostos e todo o inconveniente de quando quebra e tudo mais. E, além do mais, se eu parar de fazer exercícios e engordar, provavelmente estarei encurtando minha vida também. Então você está me oferecendo a oportunidade de ter menos dinheiro e morrer mais cedo. Não é muito cativante.”

Jeremy olhou ressentido.

“Olha, eu entendi o ponto. Mas você tem que me dar algum crédito. E com relação à diversão? Eu adoro pedalar, tanto subindo quanto descendo ladeiras – especialmente quando estou “off road” na minha mountain bike. Como posso ter uma sensação dessa em um carro? Quero dizer, é o mesmo que sentar em uma cadeira de rodas. Tenho medo de ficar tão entediado.”

Jeremy sorri.

“Eu posso ajudá-lo nisso! Você precisa apenas dirigir o mais rápido possível e a velocidade irá compensar por estar dentro de uma caixa. Pode ser muito divertido.”

“Soa legal, mas, me perdoe se estou sendo covarde, isso também não é terrivelmente perigoso? Eu escutei que milhares de pessoas são mortas e feridas todo ano por causa de excesso de velocidade nas ruas. E você também pode ter problemas com as autoridades por dirigir em alta velocidade também, certo?”

Desta vez Jeremy deu risada.

“Ah, agora estamos chegando no ponto – para ter sucesso você precisa de uma mudança fundamental de atitude. Eu entendo que como várias outras pessoas você pensa que ser um motorista é apenas passar no teste e entrar no carro.”

“Não é isso?”

“Não, para ser um verdadeiro motorista você precisa acreditar no motorismo.”

“Motorismo? O que na terra é isso?”

“Motorismo é um sistema de fé com dois princípios fundamentais. O primeiro é que, como motorista, você tem direito de dirigir da maneira que quiser e pra onde quiser. Não caia na armadilha do senso comum de pensar que a vulnerabilidade dos ciclistas, animais, pedestres e quem quer que seja, podem afetar como e pra onde você dirige.”

“Ah, certo. Bom, posso ver como seria fácil cair nessa armadilha em particular. E qual o segundo princípio?”

“O segundo princípio é que a raiva no volante é bom. Sim, você ouvirá pessoas falando sobre a raiva no volante como se fosse uma coisa ruim mas isso, claro, é sem noção. Há tantos obstáculos para motoristas encararem – leis de trânsito, burocracia do trânsito, congestionamentos e claro, trânsito – que eles precisam de raiva e agressão para superá-los. Afinal, se você pensar no estresse real e custo de dirigir você provavelmente desistiria e pegaria um ônibus, e onde estaríamos?”

*suspira* “Tenho que admitir que não tenho resposta para isso.”

Então como tenho me saído seis meses depois? Mesmo que eu tente dirigir para todos os lugares e não pedalar minha bicicleta, ainda acho que não posso me chamar um real motorista. Mas pelo menos eu sei que estou mais pobre, gordo e com raiva do que nunca.

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Tradução Lilx do original: “How do give up cycling