#VaiTerCopa, #NãoVaiTerCopa e o espaço público

A Copa do Mundo no Brasil tornou-se política mais importante que o futebol. Antes da bola rolar, se falava de estádios, mas não do gramado, se falava de motivações político-partidárias, empreiteiras e nada do escrete canarinho nas rodas de conversa. No máximo trocaram-se figurinhas, em shoppings, escolas, escritórios e nas ruas.

O futebol no Brasil tem caráter de definidor nacional, além do patriotismo de chuteiras, a identidade dos brasileiros e brasileiras se construiu também através do esporte. Não se tem notícia de outro país que durante um jogo de copa do mundo fique completamente vidrado na televisão. É uma festa privada e pública. Nos unimos em casa para assistir a uma partida ou saimos às ruas para em grupo para torcer diante de um telão e depois comemorar em festas quase carnavalescas.

Foi com grande ousadia que movimentos sociais Brasil afora resolveram marchar sob o slogan #NãoVaiTerCopa. Leviano seria imaginar que esperassem inviabilizar o evento, ou reorganizar a devoção nacional pelo futebol. Tentaram (e seguem tentando) demonstrar que grandes eventos servem a um modelo de cidade que é extremamente excludente. Remoções e gentrificação deram a tônica para além da construção dos estádios. Grandes obras, novas e largas avenidas, leves toques de BRT e metrô foram os legados efetivamente executados que irão perdurar para além do jogo final.

Cabe pensar sobre o diálogo de contestação e o restante da sociedade. A repressão violenta das forças policiais foram certamente um grande desincentivo para que fosse travado um diálogo nas ruas entre descontentes com o evento e apaixonados por futebol. Com equipamentos novos e de última geração, batalhões de choque foram a única resposta dada a quem buscou dissonar quanto ao que foi feito para que o Brasil pudesse ser palco do maior show midiático esportivo do mundo.

Tendo como força de oposição a violência, ficou difícil envolver a sociedade em uma agenda que buscasse refletir sobre a necessidade e os métodos de ação que o Brasil todo se envolveu para a Copa. Grande perda para o país certamente. Afinal, nossa jovem democracia ainda tem muito a debater para definir caminhos e consolidar vontades populares.

Mas antes que acabe o torneio já é possível vislumbrar algumas contribuições do Brasil para que as próximas Copas sejam melhores (e talvez menores) que a de 2014.

A primeira lição é que governar vai muito além de construir avenidas, estradas ou estádios. Governar é equacionar vontades, incluir a população na definição do seu próprio futuro e garantir que os investimentos do Estado possam beneficiar as pessoas, mais do que favorecer privilégios. No embate entre Copa ou Não-Copa esse debate ficou perdido e precisará ser feito em outros países democráticos que por ventura queiram ou aceitem realizar um evento dessa magnitude.

Outro aprendizado, é que contestação no Brasil precisa ter muita alegria. Do contrário, face a adversidade, se esvazia. O que claramente aconteceu com a escalada da violência policial contra os protestos que se somou à estréia da seleção nacional na Copa.

Contra a violência tão naturalizada com que se tratam as pessoas no Brasil, só o escracho, humor e deboche para seduzir a vontade popular para outros caminhos. Tem de haver um certo canibalismo político de ter mais carnaval reivindicativo e menos protestos contra tudo que aí está. Trata-se de ganhar corações e mentes, sempre.

Ou os discursos dissonantes falarão apenas aos próprias pares sobre paixões compartilhadas entre si. Tal como carnavalizaram os “hinchas” argentinos na praia de Copacabana:

Estavam lá apenas para reforçar entre eles a alegria de serem argentinos e buscarem provocar o Brasil, futebolisticamente. Ainda que desde a derrota brasileira em 1990 na Itália eles não tenham tido boas Copas e nós tenhamos acumulado dois títulos mundiais e um vice-campeonato.

Mostraram sua paixão, divirtiram-se, foram expulsos da rua pela polícia com um certo grau de violência e seguiram até a hora do jogo no Maracanã.

Ainda teremos muitos minutos de jogos de futebol, ainda mais embates entre dissonantes e as forças policiais. E até que se encerre o Mundial, as ruas continuarão sendo utilizadas como espaços de circulação, protestos e festas.

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Violência e trânsito

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O trânsito urbano é pensado para ser ordenado. Pinturas no asfalto, placas, luzes e regras, muitas regras. Mas toda a construção física e simbólica das ruas parece esquecer que existem seres humanos em circulação e conduzindo veículos.

Quando seres humanos e seus veículos colidem, ou atropelam, a maioria das pessoas ainda define essas ocorrências como “acidentes”, com toda a tentativa de isentar os envolvidos de quaisquer responsabilidades. Principalmente se um dos envolvidos for o condutor de um veículo automotor e a outra parte forem pedestres ou ciclistas.

A construção do que é “acidente” e como a terminologia é favorável a irresponsabilidade é assunto para outro(s) post(s) e até mesmo para teses de doutorado. Vale ressaltar no entanto como os próprios ciclistas discutem e reverberam ocorrências no trânsito, com ou sem vítimas.

Exemplo bem conhecido são as bicicletas brancas. Símbolo de revolta de ciclistas com a morte evitável (e ofensivamente chamada de “acidente” por não-ciclistas) de “um dos seus”. O ritual de marcar um espaço na rua como local de um crime de trânsito é interpretado de diversas maneiras a pior certamente é a de reforçar um medo difuso que muitos tem de pedalar nas ruas.

Uma bicicleta branca comunica que o risco da morte é algo que assombra quem pedala. Conceito que por vezes reativa o estereótipo de que pedalar nas ruas das cidades “que não foram feitas para bicicletas” é uma atitude temerária e arriscada. Ao invés de buscar responsabilizar a imprudência e imperícia de condutores homicidas, uma bicicleta branca pode ser simplesmente reforçar nas mentes urbanas que é preciso armadura para transitar pelos espaços público de circulação.

Para além de homenagens póstumas, há outro fator mais sutil no discurso e nas conversas sobre violência, trânsito e bicicletas. É a própria fala entre os ciclistas e o discurso de medo que propagam.

O medo vai desde as “ameaças de morte” que um ciclista sem capacete sofre de seus pares capacetudos, até as conversas retroalimentadas de incidentes, tombos e momentos de tensão no trânsito. É quase natural que um encontro entre vários ciclistas a conversa em algum momento siga o caminho de confessionário de desventuras, riscos e medo.

Tal iniciativa está longe de ser postura individual de um ou outro ciclista, mas prática corriqueira entre qualquer pessoa que pedala nas ruas das grandes cidades. Espaço “de guerra” e que foi legitimado como pertencente aos condutores de veículos motorizados. O confessionário de desventuras faz pouco para mudar a situação e trazem o debate sobre o uso da bicicleta entre ciclistas para uma esfera de melhorias nas condições de circulação humana nas ruas.

Bicicletas brancas e o confessionário de desventuras acabam por cumprir um mesmo papel, unir a comunidade dos ciclistas. Para unidos, reeducar, subjugar ou idealmente dominar os condutores motorizados e ganhar a guerra pelo espaço das ruas.

Ainda que comunidades fortes tenham um papel fundamental na construção de cidades humanas, o discurso do medo reforça cisões entre pedalantes e não-pedalantes ao invés de unir propósitos e esforços. Resolver o problema como algo “do outro”, é afirmar que se hoje temos uma cidade motorizada que oprime os desmotorizados, há que se travar a batalha pela libertação dos não-motorizados.

Como reordenar os discursos para produzir melhorias é tarefa árdua, ainda mais em uma sociedade fascinada por crime, violência e cultura do medo. O termo “confessionário de desventuras” é livremente inspirado na “fala do crime”, magistralmente definido no livro “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo de Teresa Pires do Rio Caldeira

Como conquistar uma rua para brincar

Ruas são espaços públicos de circulação urbana. Mas nas últimas décadas muito dinheiro foi gasto para convencer as pessoas que os intervalos entre casas, prédios e praças são “autopistas”.

Essa distorção simbólica foi algo que se fez de maneira premeditada e efetiva ao longo de décadas. Só assim os habitantes das cidades iriam aceitar que crianças e idosos passassem a morrer em grandes números apenas para que alguns pudessem exercer na rua a ilusão de velocidade que as carruagens motorizadas anunciam, mas não entregam.

Precisamos antes de mais nada imaginar as novas cidades necessárias para o século XXI. Essa imaginação precisa então se transformar em um discurso que subverta almas e mentes a entenderem o que significa realmente o espaço público das ruas.

No começo do século XX todos os moradores das cidades foram convocados para uma guerra. Uma guerra que vitima os mais frágeis e que foi propositadamente definida como “acidentes de trânsito”. A reação atual ao genocídio humano nas ruas, avenidas e estradas é buscar pacificar os condutores.

Faz tanto sentido como tentar fazer de um soldado armado, pacifista. Para quem só conhece a guerra, a paz é inimaginável. O desafio mostra-se grande quando a indústria automobilística segue firme em distorcer a realidade e tornar crimes de trânsito “vacilos” e responsabiliza de maneira leviana todos os atores do trânsito de igual maneira.

Nas ruas cada um tem sua responsabilidade, mas legalmente já está definido que o condutor do veículo maior deve zelar pela segurança do menor e todos pela incolumidade do pedestre. A disputa portanto passa longe da esfera legal, é simbólica e por isso mesmo sutil.

Tão sutil que de maneira alegre busca convencer a todos que se está fazendo uma campanha de “cunho social e informativo”, quando na verdade o investimento é uma maneira de garantir que as ruas simbolicamente continuem a pertencer aos condutores de carruagens motorizadas e que os eventuais “invasores” desse espaço, ciclistas por exemplo, devem se adequar a regras pensadas em nome da segurança de veículos em detrimento do bem estar das pessoas que vivem na cidade.

Segurança, justiça e desenho urbano

As cidades brasileiras são em geral partidas. De um lado a população mais rica, estabelecida em moradias formais, com acesso aos serviços de infraestrutura, lazer e aquele conceito difuso chamado “qualidade de vida”. Do lado de fora das regiões ricas, vive a população mais pobre e que em geral não tem acesso a muito do que existe nas zonas nobres.

Em São Paulo essa cisão é marcada pelo centro expandido e as periferias. No Rio de Janeiro as diferenças se manifestam no embate entre o morro e o asfalto. Em ambos os casos, o poder aquisitivo define a cidade que as pessoas tem acesso. Ainda que no Rio elas possam estar extremamente próximas geograficamente.

Uma separação das cidadanias em “castas” é certamente um drama social que afeta não apenas as duas maiores cidades brasileiras, mas grandes cidades ao redor do mundo. Além disso, um olhar atento nas metrópoles sulamericanas mostra similaridades ao mesmo tempo que aponta caminhos.

Planejamento urbano na Colômbia

A imagem que ilustra esse post é da cidade de Medellín na Colômbia, constantemente citada nos noticiários brasileiros (e mundiais) nos anos 1990 por conta do poder e influência da violência.

Hoje Medellín, e também a capital Bogotá, são cantadas em slides e prosas em diversas conferências sobre mobilidade e planejamento urbano. Deixaram de ser reconhecidas como metrópoles violentas e passaram a ditar parâmetros no que se refere a transformações positivas nas cidades.

Ambas continuam inseridas em países com enormes desigualdades econômicas e sociais, mas deram os passos necessários para a criação de um modelo latinoamericano de humanização urbana.

Os caminhos para mudanças urbanas na América Latina

Sentados ao volante, com a visão do mundo através do parabrisa de seus automóveis, as elites metropolitanas brasileiras ainda encaram as cidades através de seus próprios problemas de mobilidade. As respostas estão do lado de fora, em calçadas, na prioridade ao transporte público, na necessária mistura entre pessoas com diferentes faixas de renda. Todos elementos de uma receita de cidade que seja justa para todos e exatamente por isso, mais segura.

As cidades brasileiras precisam encarar de frente a violência pouco visível nos embates urbanos, as que não aparecem nos noticiários televisivos. Assaltos, tiros e perseguições policiais certamente chamam bastante a atenção. Mas as sutilezas urbanas e o ordenamento das cidades são a sustentação dos crimes que aparecem na televisão.

Somente cidades cerzidas irão quebrar muros, trazer pessoas paras as ruas e qualificar o ambiente urbano para que ele possa ser usado por todos. Essa costura se faz pela humanização do trânsito (zonas 30 por exemplo), acesso a espaços públicos de qualidade, ou seja, a visão de que a infraestrutura deve servir às pessoas.

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Leia mais:

Uma cidade segura é uma cidade justa. – TheCityFixBrasil 

Onde está o perigo nas ruas?

Qualquer busca sobre matérias que se relacionem a sinistralidades no trânsito para sempre buscar “chamar a atenção sobre o aumento de acidentes com ciclistas”.

Mais do que uma análise baseada em fatos, o discurso parece muito mais um reforço negativo de estigmatizar a bicicleta como um veículo “perigososo”. Mesmo que dados oficiais sempre comprovem que ao longo do tempo e com maiores incentivos ao uso da bicicleta, sinistralidades envolvendo ciclistas tendem a diminuir.

A famosa segurança em números diz na prática o que todo ciclista intui nas ruas. Mais pessoas em bicicleta é igual a menos ciclistas que sofrem as consequências da imprudência ou imperícia de condutores de veículos motorizados.

Os números mostram informações assustadoras (dados aproximados porque não as tenho em mãos agora): cerca de 50% das mortes no trânsito são de pedestres, outros cerca de 40% são de motoristas ou “caronas”.

Atenção inclusive para detalhe mais importante: 100% dos “acidentes” SEMPRE tem entre os envolvidos um veículo motorizado. Ou seja, a sinistralidade vem sempre movida a motor. Variam apenas as vítimas. Mais comumente são pedestres, mas podem ser condutores e passageiros e até ciclistas.

Resumindo, está muito errada a linha de raciocínio de quem quer dizer que pedalar nas ruas é perigoso. Os números mostram que perigoso é a combinação veículo motor+velocidade com a impunidade como outro incentivador.

O debate é antigo e durante o século XX foi vencido pelos promotores do uso do automóvel. Está na pauta a “propriedade” sobre o uso do espaço público das ruas. Por hora ainda sobrevive o conceito antigo, de que ruas são para motorizados, mas certamente esse discurso anacrônico perde espaço nos corações e mentes de quem pensa as cidades. Aos poucos perde também espaço no asfalto.

Infelizmente, até mesmo alguns ciclistas acabam muito focados nos “perigo da bicicleta” e esquecem a necessidade de resolver o real problema.

Chamam tanta atenção sobre a necessidade de se usar capacete, luvas, joelheiras, cotoveleiras etc. para pedalar, e esquecem dos reais causadores de mortes em nossas ruas. Que geralmente conduzem veículos pesados e velozes protegidos por enormes carcaças de aço presos apenas por cintos de segurança e eventuais air-bags. Mas sem qualquer dispositivo que salve as vidas de quem está do lado de fora, a pé ou de bicicleta.

Quem se preocupa muito com os “perigos da bicicleta”, acaba se prestando a dois papeis. Ou é inocente útil para reforçar o discurso do medo que garante a “propriedade das ruas” para os automóveis, ou tem realmente a intenção de manter a lógica das cidades presa ao século XX, aquele das guerras, do petróleo e do automóvel.