Segurança, justiça e desenho urbano

As cidades brasileiras são em geral partidas. De um lado a população mais rica, estabelecida em moradias formais, com acesso aos serviços de infraestrutura, lazer e aquele conceito difuso chamado “qualidade de vida”. Do lado de fora das regiões ricas, vive a população mais pobre e que em geral não tem acesso a muito do que existe nas zonas nobres.

Em São Paulo essa cisão é marcada pelo centro expandido e as periferias. No Rio de Janeiro as diferenças se manifestam no embate entre o morro e o asfalto. Em ambos os casos, o poder aquisitivo define a cidade que as pessoas tem acesso. Ainda que no Rio elas possam estar extremamente próximas geograficamente.

Uma separação das cidadanias em “castas” é certamente um drama social que afeta não apenas as duas maiores cidades brasileiras, mas grandes cidades ao redor do mundo. Além disso, um olhar atento nas metrópoles sulamericanas mostra similaridades ao mesmo tempo que aponta caminhos.

Planejamento urbano na Colômbia

A imagem que ilustra esse post é da cidade de Medellín na Colômbia, constantemente citada nos noticiários brasileiros (e mundiais) nos anos 1990 por conta do poder e influência da violência.

Hoje Medellín, e também a capital Bogotá, são cantadas em slides e prosas em diversas conferências sobre mobilidade e planejamento urbano. Deixaram de ser reconhecidas como metrópoles violentas e passaram a ditar parâmetros no que se refere a transformações positivas nas cidades.

Ambas continuam inseridas em países com enormes desigualdades econômicas e sociais, mas deram os passos necessários para a criação de um modelo latinoamericano de humanização urbana.

Os caminhos para mudanças urbanas na América Latina

Sentados ao volante, com a visão do mundo através do parabrisa de seus automóveis, as elites metropolitanas brasileiras ainda encaram as cidades através de seus próprios problemas de mobilidade. As respostas estão do lado de fora, em calçadas, na prioridade ao transporte público, na necessária mistura entre pessoas com diferentes faixas de renda. Todos elementos de uma receita de cidade que seja justa para todos e exatamente por isso, mais segura.

As cidades brasileiras precisam encarar de frente a violência pouco visível nos embates urbanos, as que não aparecem nos noticiários televisivos. Assaltos, tiros e perseguições policiais certamente chamam bastante a atenção. Mas as sutilezas urbanas e o ordenamento das cidades são a sustentação dos crimes que aparecem na televisão.

Somente cidades cerzidas irão quebrar muros, trazer pessoas paras as ruas e qualificar o ambiente urbano para que ele possa ser usado por todos. Essa costura se faz pela humanização do trânsito (zonas 30 por exemplo), acesso a espaços públicos de qualidade, ou seja, a visão de que a infraestrutura deve servir às pessoas.

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Leia mais:

Uma cidade segura é uma cidade justa. – TheCityFixBrasil 

Há motivo para otimismo nas ruas do Rio

Foto: Dandarah Jordão

Foto: Dandarah Jordão

Em meio aos preparativos e expectativas para Copa do Mundo e Olimpíadas uma transformação em curso nas ruas do Rio tem o potencial de deixar marcas para o futuro do Rio de Janeiro. As pressões pela melhoria do transporte público e a expansão da malha metroviária estão longe de serem atendidas. E antes das mudanças grandiosas com obras vultosas, a bicicleta foi capaz de entrar na agenda de transformação urbana pela sutileza.

O Rio de Janeiro sonha em ser metrópole mundial. O metro quadrado absurdamente caro já tornou esse lado perverso das grandes cidades mundiais uma realidade. As pressões e dificuldades para que a população se adapte estão postas nas ruas, avenidas e nas expansões urbanas mais vistosas. Novamente a bicicleta surge, sutil. Toda cidade “de classe mundial”, capaz de influenciar o futuro urbano do planeta adotou a bicicleta. Nos sonhos cariocas portanto, impossível não promover as pedaladas.

No embate entre sutileza e grandes obras, há muito debate necessário a ser travado. Mas é preciso sempre lembrar que gratuita e acessível para todos, a bicicleta é aquela ferramenta sutil anti-gentrificação. Veículo que precisa da diversidade de gente, de negócios e moradias. A cidade da bicicleta, aquelas de classe mundial e tudo o mais, integra melhor seus moradores ao tecido urbano com moradias e empregos próximos e claro, uma população com uma renda suficiente para ser capaz de arcar com os custos de moradia.

A invasão das bicicletas no centro do Rio de Janeiro traz consigo uma meio de subverter uma cidade sonhada somente para quem pode pagar (caro) por ela.

A importância de promever a bicicleta no Congresso

Na divisão de poderes do Estado o legislativo certamente é o maior mistério. As discussões, comissões, disputas e omissões para a criação de novas leis e reformas das existentes são extremamente complexas de serem entendidas por quem está de fora, isto é, a maioria de nós eleitores.

Os caminhos dentro do Congresso são longos e até mesmo tortuosos, literalmente. Por entre longos corredores é fácil se perder em meio a desumana arquitetura das esculturas de concreto de Niemeyer. É a “casa do povo”, mas não é capaz de receber as demandas populares. Corredores de teto baixo e salas com mesas e cadeiras fixas muito espaçadas tornam o ambiente a antítese da Ágora e até certo ponto inviabilizam o debate legislativo entre representantes eleitos e os cidadãos.

Apesar das dificuldades físicas e também das simbólicas, é no Congresso Nacional que se modificam as leis e também se criam novas. Influir nesse espaço costuma ser algo da prerrogativa de grupos que investem na pressão para que interesses particulares estejam acima da vontade da população.

A sociedade civil brasileira, promotores da bicicleta inclusos, ainda aprende como fazer pressão em torno das suas demandas. Desconhecemos os caminhos entre corredores do Congresso e naturalmente as forças em disputa entre os que lá circulam. Ainda assim há muitos espaços ainda vazios, prontos para serem pedalados.

Bicicletas na agenda nacional do país, com representatividade local e força de pressão nas esferas locais, estaduais e federal é uma construção possível que aos poucos começa a se desenhar.

Por hora batalhamos pela isenção do IPI para bicicletas, uma idéia que já atraiu mais de 85 mil assinaturas virtuais que funcionaram como meio de pressão para que um pequeno grupo de ciclistas tivesse força para pressionar senadores e deputados, in loco.

Entenda um pouco mais o que os ciclistas foram fazer no Congresso Nacional no Vá de Bike.

Onde está o perigo nas ruas?

Qualquer busca sobre matérias que se relacionem a sinistralidades no trânsito para sempre buscar “chamar a atenção sobre o aumento de acidentes com ciclistas”.

Mais do que uma análise baseada em fatos, o discurso parece muito mais um reforço negativo de estigmatizar a bicicleta como um veículo “perigososo”. Mesmo que dados oficiais sempre comprovem que ao longo do tempo e com maiores incentivos ao uso da bicicleta, sinistralidades envolvendo ciclistas tendem a diminuir.

A famosa segurança em números diz na prática o que todo ciclista intui nas ruas. Mais pessoas em bicicleta é igual a menos ciclistas que sofrem as consequências da imprudência ou imperícia de condutores de veículos motorizados.

Os números mostram informações assustadoras (dados aproximados porque não as tenho em mãos agora): cerca de 50% das mortes no trânsito são de pedestres, outros cerca de 40% são de motoristas ou “caronas”.

Atenção inclusive para detalhe mais importante: 100% dos “acidentes” SEMPRE tem entre os envolvidos um veículo motorizado. Ou seja, a sinistralidade vem sempre movida a motor. Variam apenas as vítimas. Mais comumente são pedestres, mas podem ser condutores e passageiros e até ciclistas.

Resumindo, está muito errada a linha de raciocínio de quem quer dizer que pedalar nas ruas é perigoso. Os números mostram que perigoso é a combinação veículo motor+velocidade com a impunidade como outro incentivador.

O debate é antigo e durante o século XX foi vencido pelos promotores do uso do automóvel. Está na pauta a “propriedade” sobre o uso do espaço público das ruas. Por hora ainda sobrevive o conceito antigo, de que ruas são para motorizados, mas certamente esse discurso anacrônico perde espaço nos corações e mentes de quem pensa as cidades. Aos poucos perde também espaço no asfalto.

Infelizmente, até mesmo alguns ciclistas acabam muito focados nos “perigo da bicicleta” e esquecem a necessidade de resolver o real problema.

Chamam tanta atenção sobre a necessidade de se usar capacete, luvas, joelheiras, cotoveleiras etc. para pedalar, e esquecem dos reais causadores de mortes em nossas ruas. Que geralmente conduzem veículos pesados e velozes protegidos por enormes carcaças de aço presos apenas por cintos de segurança e eventuais air-bags. Mas sem qualquer dispositivo que salve as vidas de quem está do lado de fora, a pé ou de bicicleta.

Quem se preocupa muito com os “perigos da bicicleta”, acaba se prestando a dois papeis. Ou é inocente útil para reforçar o discurso do medo que garante a “propriedade das ruas” para os automóveis, ou tem realmente a intenção de manter a lógica das cidades presa ao século XX, aquele das guerras, do petróleo e do automóvel.

Pontes urbanas e nossas cidades

Quem já pedalou pelas ciclovias holandesas certamente se impressionou com as pontes e as conexões quase invisíveis entre os dois lados de um canal ou simplesmente para passar debaixo de uma auto-estrada.

São Paulo é uma cidade partida, talvez até mais partida do que o Rio de Janeiro de Zuenir Ventura. Entre rios, a paulicéia cresceu e desvairou-se. Para além das margens centrais foram morar os migrantes pobres e os que foram expulsos da zona central cada vez mais valorizada, especulada e gentrificada.

Mas como cidade de rios, ainda que muitos deles asfaltados, São Paulo tem pontes e por incrível que pareça, não há ponte, viaduto ou passagem subterrânea que dê as boas vindas para pedestres e ciclistas cruzarem de uma margem a outra dos rios. Honrosas excessões as antigas pontes que cruzam o vale do rio Anhangabaú, onde aliás não se vê mais água, ainda que as chuvas de verão ocasionalmente nos façam lembrar do porquê do nome “vale” associado a região.

Para além de pontes para conectar a cidade partida entre o centro expandido e o restante da cidade, São Paulo precisa de um pouco mais de cidade ao redor dos seus rios. Afinal como comprova quem caminha nas margens dos rios Tietê e Pinheiros, há muito pouco de agradável e divertido para ser visto por quem trafega pela região em velocidades humanas.

Até que tenhamos portanto todas as pontes humanizadas, teremos de construir juntos uma cidade mais interessante. E o primeiro passo para esse nova cidade é garantir que mais pessoas possam desfrutar, mesmo das partes menos interessantes, a pé ou de bicicleta.

Fotos via treehugger:
7 bike bridges in the Netherlands offer us a few lovely lessons