Quando um ciclista é o atropelador

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A chance de um ciclista atropelar e “levar a óbito” um pedestre no trânsito é ínfima, mas nem por isso quer dizer que não aconteça. E eis que aconteceu.

Em uma movimentada avenida paulistana, ainda sem infraestrutura cicloviária, um ciclista “em alta velocidade” atropelou um senhor de 90 anos que mais tarde veio a falecer em decorrência dos ferimentos sofridos. É, como se define no jornalismo, o caso em que o cachorro morde o homem. Algo tão raro que pelo ineditismo merece ser notícia. Assim foi.

No trânsito urbano que temos hoje, as mortes de pedestres por veículos motorizados são apenas estatísticas, raramente despertam interesse midiático e em geral produzem conteúdo que criminaliza o pedestre e isenta de responsabilidade os condutores que deveriam zelar pela segurança dos mais frágeis.

Exemplos de reportagens televisivas como o vídeo abaixo são recorrentes e chegam a ser a tônica geral.

A conclusão final do vídeo é de que a responsabilidade é “não só de quem caminha por aí”, mas do poder público que não fiscaliza as condições das calçadas. Além disso, é preciso também “preservar as ruas e avenidas”. Nenhuma palavra sobre a imprudência dos condutores de motorizados e nenhuma crítica ao desrespeito comumente praticado e inclusive mostrado na reportagem.

Com o senso comum que promove a culpabilização da vítima, chega a ser irônico tratar como algoz das ruas um único ciclista quando ele é responsável por interromper uma vida. Mas é exatamente o que aconteceu na reportagem sobre o ciclista que atropelou um idoso.

Cultura do Medo

Em comparação com os primórdios da humanidade, nunca estivemos tão seguros, ainda assim, vivemos dominados pelo medo. Um medo construído socialmente e que muitas vezes nos paralisa por completo. O medo da incontrolável “bala perdida”, o medo de sermos atropelados, o medo de ser morto por simplesmente pedalar nas ruas dominadas por carros. Para cada medo, uma inação. Para cada cada inação, a naturalização das condutas irresponsáveis que deveriam ser combatidas.

Ao se falar sobre a violência contra a mulher, o senso comum quase busca incentivar cintos de castidade e burkas. Em relação a bicicleta e ao pedestre, o comportamento é tão irracional quanto e as vitimas passam a ser as responsáveis pelas fatalidades que as acometem. Violações, abusos e a irresponsabilidade dos causadores ficam em segundo plano, relegadas ao plano do esquecimento e taxadas de comportamentos “naturais” ou atitudes socialmente toleráveis.

Mulheres efetivamente sofrem com a violência machista e ciclistas se machucam e eventualmente são mortos nas ruas. No entanto, o que é reversível de maneira bastante simples é a responsabilidade de cada um. A cultura do medo busca promover a lógica de que o risco está na vulnerabilidade da bicicleta e que seu usuário deve buscar prevenir-se desses riscos, idealmente utilizando uma armadura ou pedalando apenas em parques e em locais isolados do trânsito motorizado.

As ruas foram socialmente definidas como espaço exclusivo de circulação motorizada ao longo do século XX. A contestação dessa construção social é dever de todos que acreditam que as mortes no trânsito, todas elas, são inadmissíveis. Quando todo atropelamento por motorizado for tratado como um episódio fora da normalidade, teremos progredido. Até lá, é preciso responsabilizar

Trens, burca e capacete

Uma nova lei estadual em São Paulo quer minimizar o assédio, tão comum, sofrido pelas mulheres nos trens. Sim, a justificativa aborda não a necessidade de punir assediadores ou criar meios de denúncia para coibir crimes. Vale ler a íntegra da justificativa do PL 175/2013 (Lei do Vagão Rosa) aprovado recentemente na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp):

É comum constatarmos reclamações de mulheres que necessitam usar as linhas do metrô e da CPTM de abusos cometidos contra as mesmas, nos trens em horários de grande pico.

Sabemos que, infelizmente, grande parte da população feminina é obrigada a conviver com abusos pela falta de espaço nas composições. Essa situação é constrangedora para quem é obrigada a utilizar esse meio de transporte para ir e vir do trabalho, à escola, e outros, pois na falta de espaço nos vagões, as mulheres não tem outra opção senão “agüentar” esse constrangimento durante todo o percurso, que muitas vezes é longo.

Infelizmente as mulheres não são respeitadas nessas composições nem mesmo quando acompanhadas por filhos menores.

Diante do exposto, tomo a liberdade de apresentar a esta propositura, pois os problemas de assédio às mulheres são comuns e cabe a nós minimizarmos, diante do possível, essa situação.

Toda violência sexual é uma afirmação de poder. O homem, armado de seus “instintos”, ou qualquer outra justificativa estapafúrdia, acredita estar em uma situação de superioridade e para afirmar sua crença, subjuga a mulher pelo uso da força. Há algo em comum entre a violência sexual e a violência do trânsito: reafirmação de poder por quem o detém somada a culpabilização da vítima.

Ao invés de buscar reverter distorções sociais que tornam aceitável a violência, o “vagão rosa” simplesmente reafirma como natural/normal a conduta violenta.

Três frases escritas no texto “Vagão rosa, para não ser encoxada” ajudam a definir o absurdo:

– Comete-se violência sexual contra as mulheres nos trens, segrega-se as vítimas. Seguindo essa lógica, em breve poderia se propor que, nas ruas e espaços coletivos, as mulheres passassem a usar burca. Assim, os homens não seriam “tentados” a cometer crimes sexuais.

(…)

– … a culpada é a vítima. Seja porque usou “roupas sensuais”, seja porque “se expôs” a uma situação potencialmente perigosa.

(…)

– A outra ideia fincada no imaginário de homens (e também de mulheres) é mais interessante. As mulheres é que são a ameaça. (E não aqueles que abusam de seus corpos e de suas almas.) Confina-se, cobre-se, esconde-se aquilo que nos envergonha e aquilo que nos coloca em perigo.

É possível fazer um paralelo claro com a situação da bicicleta do trânsito e o abuso contido no discurso que pune ciclistas:

– Em um trânsito violento, cabe aos mais frágeis (ciclistas, pedestres etc) se protegerem/serem protegidos;
– Cientes de sua fragilidade, os mais frágeis podem ser culpabilizados por se exporem ao risco;
– O ciclista/pedestre na rua precisa estar adequadamente equipado/vestido já que sua simples presença é uma ameaça à si mesmo e ao entorno.

Naturalmente o Estado pode agir em defesa dos mais frágeis com uma certa dose de segregação viária e redução da velocidade dos motorizados. Mas não “por causa dos ciclistas”, tratados como vítimas e algozes da própria situação indefesa. Tornar viável uma circulação nas ruas que seja compatível com a vida humana é justamente corrigir distorções que se tornaram culturalmente aceitáveis ao longo da história.

Da mesma forma o machismo precisa acabar não “por causa das mulheres”, mas também para que o homem possa se libertar da figura do “macho-brucutu” e se permitir “deixar o motor em casa e caminhar”. Ou seja, a humanização das cidades é também uma feminilização das ruas.

A opressão assume várias formas, a mais comum delas é o abuso verbal, e os ciclistas costuma receber alguns. Desde o “vá pra ciclovia/parque”, até o “use capacete/luz/luva”, ou seja, procure seu lugar “seguro”/segregado e proteja-se do abuso dos outros com trajes/acessórios adequados.

Por mais mulheres em mais bicicletas mais vezes e menos opressão nas ruas, nos trens e em qualquer lugar.

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São Paulo e a criminalização das ruas

São Paulo, cidade sede da maior festa do futebol, construiu estádio, abriu avenidas e até um viaduto novo para que milhares pudessem assistir aos jogos no Itaquerão. Ficou na dívida de abrir ruas para as pessoas.

O local de festas imposto pelas pessoas é nas inviáveis ruas da Vila Madalena com suas casas, bares e ladeiras estreitas incapazes de suportar o fluxo de pessoas interessadas em compartilhar a felicidade. O sucesso do espaço público do bairro espalhou o transtorno para os moradores e como reação a administração pública investiu em criminalizar o espaço público.

Além do reforço na regra de bares fecharem às 1am, as ruas são esvaziadas à força pela Polícia Militar para que “o pessoal da limpeza” possa passar.

O vídeo mostra a história triste de uma cidade em busca de afogar as mágoas, mas que só poderia faze-lo em espaços privados, longe das ruas.

São Paulo sofre de excesso de gente, em todo evento há uma fila, em todo espaço público de lazer muita gente que teve a mesma idéia ao mesmo tempo. Uma cidade que esqueceu das pessoas e dos sentimentos que elas buscam compartilhar é uma cidade necessariamente triste. Que impõe toque de recolher nas centralidades fabricadas, que concentra gente demais nos poucos espaços que oferece para interação e diversão livre entre as pessoas.

O Rio de Janeiro tem a orla de Copacabana e seus milhões no Reveillon e em tantos outros shows, passeatas e festas. São Paulo já teve a Avenida Paulista, que sofre com excesso de regras e onde torcidas não são bem vindas para comemorar seus triunfos. Os gringos, os hermanos e os paulistanos descobriram na Vila Madelena uma alternativa, ao invés de expulsá-los para suas casas, a cidade deveria multiplicar alternativas de espaços livres para festejos.

Porque toda cidade tem o direito de festejar suas glórias e afogar suas mágoas no espaço público. Como provoação final, duas fotos da festa em Buenos Aires nessa quarta feira, 9 de julho de 2014.

Espaços públicos retomados à força

 

Mudar hábitos requer esforço e apesar do que se diga com certa frequência, o automóvel é um vício menos poderoso do que se imagina. Confrontadas com a ausência de opções, naturalmente as pessoas são capazes de descobrir alternativas.

Com restrições de circulação para as carruagens motorizadas por conta do jogo entre Argentina e Suíça no Itaquerão, o paulistano encontrou alternativas. Afinal, circular das 7h às 20h ficou proibido para 1/5 da frota automobilística. Nas imprecisões do olhar, muitas bicicletas em circulação em um dia ensolarado e com temperatura amena. E na soma entre a imposição legal de não circular e o incentivo climático de pedalar, as pessoas foram capazes de fazer opções.

Apesar de um visível aumento no número de bicicletas, a mudança de hábito pela força funciona como a árvore que cai e deixa a rua aberta apenas para pedestres, ciclistas e as carruagens dos moradores da rua. Assim que for liberado o fluxo, a situação volta ao estágio anterior. O desafio está em construir entre as pessoas a necessidade por espaços humanizados em ruas que funcionem como áreas para pessoas e com circulação motorizada restrita.

Vila Madalena aberta para pessoas - Foto: JP Amaral

Vila Madalena aberta para pessoas – Foto: JP Amaral

É mais simples do que se imagina, requer apenas coragem de encarar os descontentes para implementar soluções transitórias que se tornem permanentes. O miolo do bairro boêmio da Vila Madalena torna-se rotineiramente intransitável pelo grande afluxo de pessoas e veículos. O caminho mais simples é abrir determinadas ruas para as pessoas e restringir com isso o acesso do trânsito motorizado de passagem.

Grandes eventos com um número excepcional de pessoas, naturalmente reordena os caminhos, mas quando efetivamente planejado e em diversas áreas da cidade, zonas de pedestres representam um ganho geral para a cidade. Por hora, ao menos em São Paulo o que se vê são regiões em que muita gente circula por calçadas apertadas com ruas com estacionamento motorizado liberado e carruagens travadas no meio da pista em um exemplo de imobilidade e desconforto para pedestres e condutores.

É preciso carnavalizar mais ruas, para que seja possível a fluidez de diversão, compras e lazer. E se assim não for, seguiremos condenados a trancos e barrancos em calçadas abarrotadas e lotação esgotada nos eventuais espaços agradáveis que surjam (tal como aconteceu com a Vila Madalena).

Um pouco de contexto:
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Torcedores sem cantigos e cidades sem repertório

 

Um som repercurte mais alto nos estádios e se infiltra também na cobertura televisiva: “Eu sou brasileirooooo, com muito orgulho, com muito amooooorrrrr…”. Pouco importa se o Brasil está em campo, se o jogo é da Argentina com a Bósnia ou Rússia e Coréia do Sul. A insistência e repetição constante do hino da torcida pode até parecer interessante, patriótica ou empolgante. Mas a verdade é que trata-se de uma composição de 1949 e que ganhou popularidade nos últimos anos e ainda persegue os ouvidos mais atentos sem concorrência ou sem novidades.

Como resumido no blog Chuteira Preta: a torcida de estádio parece estar respondendo a alguma ofensa não-enunciada. É como se o brasileiro entrasse xingado e cuspido nas arenas, e não extraísse disso mais do que a força para dizer: “Eu gosto do que eu sou”.

Frequentar estádios em jogos de futebol com torcidas empolgadas e genuínas é uma experiência mágica em que o futebol mostra sua força como paixão de massas. A culpa da insistência no hino modorrento do público brasileiro certamente tem pouca relação com os “estádios padrão Fifa”, já que nossos vizinhos argentinos, chilenos, colombianos e uruguaios parecem ter trazido na bagagem a empolgação de partidas da Copa Libertadores da América. Ou seja, a paixão pelo futebol sobrevive ao estádio shopping center.

 

A diferença talvez esteja na origem dos torcedores. Enquanto os estrangeiros deslocaram-se de longe atrás da sua seleção, o público brasileiro é composto menos por fanáticos pelo esporte bretão e mais por quem busca viver a experiência única de ter uma Copa do Mundo em seu país e em sua cidade. Da mesma forma como os hinos estão prontos e foram compostos no século XX, o repertório urbano brasileiro até se assenta no que se criou décadas atrás.

Só mesmo a falta de repertório para explicar o caos pré-jogo do Brasil. São Paulo, cidade que ter a obsessão de medir congestionamentos, emplacou mais de 309km de filas. Isso pelas contas oficiais, subestimadas. Em um cálculo um tanto quanto solto, um jornal paulistano estimou que fossem cerca de 100.000 pessoas presas em confortáveis carruagens motorizadas, e que acompanharam pelo rádio ao menos o começo da partida.

O problema ganha contornos trágicos quando a administração municipal prefere intervir junto ao legislativo para decretar um feriado municipal no próximo jogo ao invés de buscar alternativas. Sem o feriado, o rodízio de veículos foi expandido, as pistas expressas para ônibus irão operar durante todo o dia e os funcionários municipais terão ponto facultativo.

Todo um esforço para que mais pessoas, possam ficar presas em congestionamentos menos longos dentro de seus veículos privados a caminho de espaços privados onde irão assistir a um jogo de futebol que mobiliza todo o público brasileiro.

A cidade corre com pressa para chegar logo enquanto sofre congestionada e para. Sem repertórios de meios de transporte, sem opções públicas e gratuitas para acompanhar o futebol São Paulo mostra que seu maior problema ainda está na pobreza de opções livres nas ruas. Em cada praça um telão, em cada rua uma alegria. Copa do Mundo certamente rima com expandir usos e trazer mais pessoas para o espaço público.

Enquanto não houver criatividade e paixão para construir e pensar novos cânticos e novos caminhos, seguiremos com hinos antigos e congestionamentos previsíveis e intransitáveis.

 

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