Retratos e inspiração

A visita de Nic Grobler ao Brasil, em especial à São Paulo, foi um momento de inspiração para ciclistas e um convite para conhecer mais sobre os ciclistas da África do Sul, um país que, mesmo do outro lado do Atlântico, tem problemas e potenciais semelhantes em relação ao uso da bicicleta.

A bicicleta é veículo capaz de promover a igualdade, mas acima de tudo, é um meio de despertar um outro olhar. Através das pedaladas é possível ver beleza na simplicidade, valorizar a importância das pequenas coisas. Ao olhar cada imagem congelada dos ciclistas sul africanos, torna-se impossível sair as ruas sem imaginar as histórias de paixão pela bicicleta de cada um dos ciclistas que circulam pelas ruas e estradas do Brasil.

Permanece o convite a todos para conhecer mais sobre o Bicycle Portraits, encomendar os livros e, para os mais inspirados, retratar ciclistas brasileiros.

Bicicleta, ferramenta de aproximação

Pedalando pela África do Sul, os fotógrafos Stan Engelbrecht e Nic Grobler produziram uma série de livros com retratos de ciclistas sulafricanos chamado de Bicycle Portraits (ou Retratos de Bicicleta). Em visita à São Paulo, Nic irá expor algumas das fotos do livro na Ciclo Vila e participar de um bate-papo informal nesse sábado 07 de julho, às 14h30. Confirme presença no facebook.

A África do Sul é um planeta dentro de um único país, com diversas culturas, e uma história trágica de segregação e racismo. Através desse projeto, esperamos poder oferecer as pessoas um olhar sobre a vida de cada um através de um objeto dotado de movimento, praticidade e alegria – a bicicleta.”

Do outro lado do Atlântico, através da arte, a bicicleta busca ser uma ferramenta de assistência e construção da independência de uma parcela menos favorecida. Essa reflexão é também necessária e está cada vez mais em curso no Brasil, a presença de um ciclista do “sul do planeta” nos ajuda a repensar nossa própria realidade através de um país que tem diversas semelhanças com o Brasil.

Ética das ruas

No zoológico humano gigante das nossas cidades os usos dos espaços de circulação são construídos através das idéias. Ao longo do século XX que foi criada e disseminada a noção de que as ruas são espaços de circulação exclusivos de veículos motorizados, um conceito que tem sido revisto ao longo do mundo.

As cidades e seus usos foram construídas primeiro no mundo das idéias e com o passar do tempo certos conceitos se cristalizaram. O vídeo abaixo é uma campanha colombiana de 1941 que coloca crianças e adultos a pé como culpados pelos seus infortúnios.

A abordagem pode soar bizarra, mas infelizmente o século XX no que se refere a campanhas de trânsito ainda não acabou. A cidade do século XXI cada dia mais volta a ser a cidade das pessoas, uma cidade com espaços públicos para todos e circulação segura e prioritária dos mais frágeis.

Infelizmente ainda existem exemplos ineficientes de campanhas de culpabilização da vítima. Quando mais eficaz e correto é sempre investir no incentivo para que pedestres e ciclistas possam circular tranquilamente pelas ruas das cidades. Nessa lógica, os veículos motorizados são coadjuvantes, com o transporte público sendo sempre um ator com mais espaço do que os meios de transporte motorizados individuais.

Na comunicação publicitária institucional, como é o caso de campanhas de trânsito em Nova Iorque e em São Paulo os velhos conceitos ainda estão presentes.

Valorizar os mais frágeis é além de mais correto, também o mais racional. Vale sempre ter a mão os dados sobre vítimas de trânsito e “acidentes” (o nome oficial para colisões, atropelamentos e crimes de trânsito) no Brasil:

Ciclistas são 7% dos deslocamentos e 4% dos “acidentes”
Carros 24% dos deslocamentos e 27% dos “acidentes”
Motos 12,6% dos deslocamentos e 22% dos “acidentes”.
Fonte – cruzamento de dados das seguintes pesquisas:
Pesquisa IPEA –Mobilidade Urbana 2011
Mapeamento das Mortes por Acidentes de Trânsito no Brasil – Confederação Nacional de Municipios 2009

Dados da secretaria de saúde de São Paulo apontam que em 2011, 3,4 mil ciclistas sofreram lesões no trânsito e foram internados na rede do SUS, o que gerou um gasto de R$ 3,25 milhões ao Sistema Único de Saúde. Dados da cidade do Rio de Janeiro apontam 811 internações entre 2000-2007 e 114 óbitos no período.

Resíduos à tração humana

Tudo que se compra mais cedo ou mais tarde vira resíduo. Tudo é questão de tempo, embalagens são descartadas rapidamente já um pneu da bicicleta demora alguns bons quilômetros até ser descartado. Com tanto estímulo para comprarmos mais e mais, é natural que aumente a quantidade de resíduos.

Os resíduos sólidos podem parecer uma questão dissociada da mobilidade, muito pelo contrário. Mobilidade urbana, desigualdades sociais e resíduos sólidos estão intimamente conectados. Há transporte em cada produto que chega para ser comprado e mais transporte tem de ser feito quando chega a hora do descarte.

Nessa equação um elemento da logística de transporte de resíduos está presente, mas constantemente desvalorizado, é a figura do catador. Herdeiro histórico do garrafeiro, aquele que cruzava as ruas entoando “Olha o garrafeiro, olha o ferro-velho!” Hoje o catador não entoa músicas, mas vasculha e vive das sobras e dos excessos da sociedade de consumo. Cruza a cidade carregando toneladas no braço, segurando sua carroça ladeira abaixo, puxando com força ladeira acima.

A logística reversa é mais complexa e requer esforços maiores do que os que são capiteneados diariamente pelos catadores nas ruas das cidades brasileiras. No entanto em meio a caminhões de lixo, cooperativas de catadores e empresas de coleta seletiva transitam, movidos pelas próprias forças, os catadores.

Os catadores são um impulso espontâneo de uma sociedade que precisa aprender a lidar melhor com o que produz. Fazem o trabalho fundamental de encaminhar para a reciclagem o que iria entulhar aterros sanitários e lixões. No entanto a produção sustentável precisa mimetizar a natureza, que, tal e qual a bicicleta, é eficiente e está sempre girando toda a energia que produz.

As imagens que ilustram esse post foram feitas durante a intervenção “Pimp My Carroça” no Vale do Anhangabaú. A iniciativa foi certamente um marco na valorização da profissão de catador e mais um passo para discutir a sociedade que queremos e também valorizar a invisibilidade de quem se desloca pelas próprias forças, levando nas costas o que muitos chamariam de lixo.

Democracia e quatro rodinhas

A riqueza de uma cidade também se mede pela qualidade e diversidade de seus espaços públicos. Pobre seria a filosofia sem a ágora nas cidades gregas, fraco seria o samba sem as ruas da Lapa carioca, cinza seriam as artes plásticas francesas sem o burburinho noturno de Montmarte.

O ano é 1974 em uma ladeira ao lado de uma praça na cidade de São Paulo. Pessoas tomam a rua para a prática do que viria a ser o segundo esporte mais popular no Brasil, o skate. Quatro rodinhas numa prancha de madeira, o espírito do surfe para quem vive longe do mar. As imagens do vídeo acima, prestes a completar 40 anos, são registro histórico da cultura do skate, mas por pressão de um grupo de moradores a área está sendo modificada para inviabilizar a circulação das quatro rodinhas. Perderá a cidade mais um microcosmo de uma cultura.

A subprefeitura da região está fazendo obras no local visando fazer a “acalmia de tráfego”, ou em inglês, o “skate traffic calming”. No lugar do asfalto, faixas de paralelepípedo cuja única função é inviabilizar a circulação dos skatistas, acostumado a descer essas mesmas ladeiras há décadas.

Pode até parecer um pequeno detalhe, apenas mais uma intervenção urbana em uma cidade com pequenos e grandes conflitos por espaço de circulação e contemplação. Mas São Paulo é carente de ar livre, tanto que por aqui até viaduto torna-se importante área de lazer. Dentro dessa lógica, a perda de qualquer espaço público onde pessoas se unam para socializar de maneira livre e gratuita é uma grande perda para a cidade.

Talvez a presença dos praticantes do skate não fosse interessante para os moradores, mas certamente menos interessante é a total ausência de vida nas ruas. É no silêncio e na escuridão de ruas ermas que se prolifera a insegurança urbana, aquela que faz vítimas de assaltos e também aquela que incentiva mais e mais pessoas a ficarem em casa ou em espaços coletivos fechados, murados.

O conflito entre interesses particulares e coletivos, entre circulação e contemplação em São Paulo seguirá por muitos anos, mas é de fundamental importância que os eternos adolescentes do skate e os que querem a ordem e o silêncio nas ruas consigam uma convivência harmônica. Afinal se hoje acabou uma ladeira para a prática de surfe sobre rodas, amanhã será uma praça vazia sem crianças brincando, sem idosos jogando dominó. Assim aos poucos a rua será tomada por interesses menos nobres dos que se aproveitam dos vazios urbanos para a prática criminosa.

Para além disso, da criatividade jovem é que nasce a evolução humana. Também nos anos 1970, um grupo de garotos na Califórnia passou a invadir piscinas particulares vazias para voar nas ondas fixas de asfalto. Esses “pequenos deliquentes” hoje fazem parte da bilionária indústria dos “esportes radicais”, como mostra o documentário Dogtown & Z Boys.

Saiba mais:
‘Pico’ de skatistas há 40 anos, ladeira recebe paralelepípedos – Folha.com
Prefeitura inicia obra na Praça Joanópolis para impedir a prática do skate – Espn.com.br
A privatização da rua – blog ZONA 10