Como conquistar uma rua para brincar

Ruas são espaços públicos de circulação urbana. Mas nas últimas décadas muito dinheiro foi gasto para convencer as pessoas que os intervalos entre casas, prédios e praças são “autopistas”.

Essa distorção simbólica foi algo que se fez de maneira premeditada e efetiva ao longo de décadas. Só assim os habitantes das cidades iriam aceitar que crianças e idosos passassem a morrer em grandes números apenas para que alguns pudessem exercer na rua a ilusão de velocidade que as carruagens motorizadas anunciam, mas não entregam.

Precisamos antes de mais nada imaginar as novas cidades necessárias para o século XXI. Essa imaginação precisa então se transformar em um discurso que subverta almas e mentes a entenderem o que significa realmente o espaço público das ruas.

No começo do século XX todos os moradores das cidades foram convocados para uma guerra. Uma guerra que vitima os mais frágeis e que foi propositadamente definida como “acidentes de trânsito”. A reação atual ao genocídio humano nas ruas, avenidas e estradas é buscar pacificar os condutores.

Faz tanto sentido como tentar fazer de um soldado armado, pacifista. Para quem só conhece a guerra, a paz é inimaginável. O desafio mostra-se grande quando a indústria automobilística segue firme em distorcer a realidade e tornar crimes de trânsito “vacilos” e responsabiliza de maneira leviana todos os atores do trânsito de igual maneira.

Nas ruas cada um tem sua responsabilidade, mas legalmente já está definido que o condutor do veículo maior deve zelar pela segurança do menor e todos pela incolumidade do pedestre. A disputa portanto passa longe da esfera legal, é simbólica e por isso mesmo sutil.

Tão sutil que de maneira alegre busca convencer a todos que se está fazendo uma campanha de “cunho social e informativo”, quando na verdade o investimento é uma maneira de garantir que as ruas simbolicamente continuem a pertencer aos condutores de carruagens motorizadas e que os eventuais “invasores” desse espaço, ciclistas por exemplo, devem se adequar a regras pensadas em nome da segurança de veículos em detrimento do bem estar das pessoas que vivem na cidade.

A música da bicicleta

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Pedalar de olhos fechados é um experiência interessante, ainda que pouco recomendável. Mas mesmo com a visão apurada à frente, é possível trabalhar outros sentidos.

Toda bicicleta tem seu som, seja uma roda livre que gira enquanto não se pedala ou tantos outros. O chacoalar das peças nas imperfeições no asfalto, a campainha, a corrente que gira, o pedivela torcido que geme.

Com tantos sons, é possível fazer música, como o compositor abaixo:

Ou simplesmente imaginar-se de olhos fechados, tal e qual o passageiro de uma tandem, e ouvir sua bicicleta através de cada um dos seus barulhos.

A evolução da bicicleta

 

Certo dia alguém montou duas rodas alinhadas em um pedaço de madeira. Desde então o movimento humano nunca mais foi o mesmo. O vídeo abaixo é uma deliciosa ilustração de como a bicicleta evoluiu se adaptou até se tornar a maneira mais eficiente de deslocamento no planeta.

Com essa simples invenção, a pessoa em bicicleta gasta menos energia que o mais eficiente pássaro e nem precisa sair do chão para consumir poucos recursos e ir mais longe.

Pedalemos!

Via: Arquitetura Sustentável

Por mais afeto nas ruas

Houve um tempo em que as pessoas estavam acima das máquinas nas cidades.

Ao que tudo indica, depois de décadas desumanas nas ruas há um pouco de amor que se prolifera no leito do asfalto e em todos os intervalos entre o concreto dos prédios, viadutos e túneis.

É preciso um olhar atento para descobrir por onde caminha subversão urbana em curso. Quem prestar atenção irá ver ela vem através do amor pela bicicleta.

Em cidades desumanas é preciso uma máquina para explorar as rachaduras de um ambiente construído para veículos motorizados. Confinados e desvalorizados, os cidadãos que por ventura estejam a pé carecem de união pela paixão de caminhar para unirem-se na transformação urbana que lhes seria benéfica.

Certamente a desvalorização ampla do caminhar impôs uma estrutura urbana que é simplesmente inviável para o pedestrianismo. Por conta disso, a bicicleta tornou-se o veículo perfeito para defender a humanização de espaços urbanos. Só um veículo industrial que potencializa a força humana seria capaz de quebrar resistências e encurtar distâncias. Distâncias que foram pensadas para serem percorridas por pessoas em máquinas transformaram em desnecessário o esforço humano.

De zero ao próximo semáforo vermelho em poucos segundos é a rotina de desamor que se acostumaram os habitantes das cidades. Pela força nada irá convencer um condutor de um motorizado a mudar de atitude ou se quer rever comportamentos. Mas a suprema ironia da eficiente bicicleta em meio aos excessos do congestionamento é mensagem clara, que mesmo assim não basta. Uma única bicicleta circulando em meio ao trânsito motorizado é a imagem de um cidadão fora do contexto social vigente.

Pela necessidade de serem o trânsito que nasceu o movimento da Massa Crítica e das bicicletadas. Foi o momento em que paixão pela bicicleta começou a se misturar com ativismo político em prol da bicicleta. Muitos queriam apenas pedalar, outros já viam o potencial político transformador que a bicicleta imprimia nas cidades em seu simples girar pelas ruas. A mistura entre amantes de um objeto e ativistas é capaz de levar a transformação urbana até certo ponto.

A partir de determinados obstáculos, não é mais possível apenas unir-se em bando e pedalar tranquilo entre amigos. É preciso influir diretamente na organização espacial das cidades. Uma atuação política real que represente de maneira clara para todas as pessoas da cidade a real função da bicicleta. Que a torne mais que um objeto, uma ferramenta de subversão urbana capaz de simplesmente colocar os deslocamentos em função das pessoas em detrimento das máquinas.

Quando a bicicleta se torna uma opção para todos, a infraestrutura urbana tende a se comprimir para uma escala mais humana e as distâncias podem ser percorridas de diversas maneiras. O veículo motorizado particular deixa portanto de ser a opção mais encorajada e torna-se apenas mais uma.

Viveremos para ver e celebraremos.

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Ciclovia no centro do Rio – Foto: Studio-X Rio

Banho de chuva em bicicleta

Nuvems pós-chuva. Foto: Thiago Benichio

Nuvems pós-chuva. Foto: Thiago Benicchio

Ciclistas em geral desenvolvem uma certa admiração pelo horizonte, especialmente no verão. É com a visão longe que se pode admirar as nuvens carregadas que antecipam no ciclista o aguaceiro que há de vir. Antecipam o banho de chuva que está por vir.

Existem soluções possíveis para chuvas iminentes, a fuga sendo claro a menos interessante. Existe a proteção, feita através de capas e roupas impermeáveis. No entanto a melhor dela é se lançar nas ruas equipado apenas com um paralamas (para resguardar a retaguarda), ou nem ao menos isso.

A opção pelo risco é a dos maiores sabores. O primeiro deles é o do cheiro da chuva. Aquela que acabou de passar ou chega primeiro através do perfume da água que começou ao longe a molhar tudo, sem ainda encharcar.

Depois do cheiro vem os pingos. E cada chuva tem sua identidade moldada pelo intervalo, distância e peso das gotas. Existem as que quase se desmancham no ar enquanto refrescam o caminho. Incapazes de aderir ao algodão das roupas, resumem-se a grudar na pele onde misturam-se com o suor do ciclista que acelera a pedalada em busca do seu refúgio seco.

Tem também a chuva dos pingos fortes e densos entre si. Formam uma parede um pouco desconfortável de atravessar, mas que em pouco tempo, com o corpo molhado, transforma-se em ducha que expurga todas as dores e ansiedades. Perfeita para ser percorrida com total devoção as forças naturais. Afinal primeiro é preciso debater-se contra a natureza, até o ponto de aceitar o inevitável e tornar-se parte indivisível do ambiente ao redor, completamente encharcado.

Por fim, existe aquela outra chuva que ameaça com força o horizonte. Repleta de densas nuvens cinzentas, raios e trovões, chega a assustar. Mas que nas ruas, levada por ventos estratosféricos, encontra o ciclista apenas pela janela de casa, refúgio seco de onde se admira, mas não se é capaz de aproveitar a chuva.