O trânsito seguro de bicicletas

Bicicletas são veículos seguros por excelência capazes de manter velocidade graças ao esforço físico de seu condutor. Sendo essa dependência do ciclista seu maior trunfo.

É no entanto bastante comum ouvir comentários e dúvidas daqueles que por ventura ainda não pedalam quanto a segurança de se conduzir um bicicleta nas cidades. É uma pergunta difícil, que gera embaraço aos mais desatentos mas cuja resposta pode ser repetida com o mantra em relação a segurança intrínseca da bicicleta: sua limitação de velocidade de acordo com a capacidade do condutor.

Ainda assim, a segurança da bicicleta por si só, perde evidência em cidades com ruas e avenidas tomadas por veículos motorizados e altos níveis de estresse. O problema então deixa de ser a bicicleta e passa a ser o uso das ruas.

Nascida no século XIX, a bicicleta chegou ao século XXI firme, forte e capaz de desempenhar um papel que ficou esquecido em muitas cidades ao redor do mundo. O melhor meio de transporte em curtas distâncias e máquina mais eficiente jamais produzida pelo homem para a conversão de força muscular em movimento.

Para que o potencial da bicicleta seja devidamente compreendido e exercido, é preciso permitir que seus usuários desfrutem da segurança natural do veículo e essa segurança se constrói com intervenções diretas na pacificação da circulação urbana.

A lógica da velocidade motorizada em largas avenidas é um retumbante fracasso, tendo a degradação urbana e a inviabilização da circulação humana como consequências diretas. Discutir segurança dentro desse cenário tem de passar pelo debate e promoção de rotas seguras para deslocamentos humanos.

Nas cidades do século XX, foi introduzido um elemento novo, o automóvel. Para que ele pudesse circular em segurança, foi preciso confinar os pedestres nas calçadas e retirar todas as interferências das ruas. Nosso tempo é de reversão do uso do espaço urbano em favor das pessoas, e o caminho passa pela mudança do discurso em relação ao uso da bicicleta.

Ciclofaixas e ciclomodismo

A Prefeitura do Rio de Janeiro anunciou que irá lançar ciclovias operacionais aos domingos, será inicialmente um corredor isolado por cones dedicado ao trânsito de bicicletas. O plano é conectar o Parque do Aterro do Flamengo na Zona Sul, à Quinta da Boa Vista na Zona Norte.

É importante no entanto entender o nascimento desse tipo de infraestrutura. O termo “ciclovia operacional” é mais conhecido pelo apelido paulistano “ciclofaixas de lazer”. Criadas em agosto de 2009 pela Secretaria Municipal de Esportes, com o apoio de um patrocionador, de imediato esse parque ciclístico teve um sucesso estrondoso, se espalhou por São Paulo e pelo Brasil.

Inspiradas em parte nas “Ciclovias” de Bogotá na Colômbia, a versão paulistana tem dois grandes diferenciais, sinalização horizontal e vertical permanente e o fato de ser exclusiva para bicicletas.

A capital colombiana iniciou nos anos 1970 uma política de estímulo as atividades ao ar livre. Diversas avenidas durante algumas horas aos domingos e feriados tornaram-se exclusivas para a circulação de pessoas em transportes ativos. Bicicletas, patins, skates, patinetes, pessoas a pé, todos circulando livremente em um sentido das avenidas enquanto no sentido oposto o trânsito motorizado seguia seu fluxo. Muito parecido com o que acontece todos os domingos e feriados na orla carioca. As pistas junto ao mar somente para pedestres e transportes ativos (exceto a bicicleta, que contam com a ciclovia) e as pistas junto aos prédios com o fluxo motorizado em um único sentido.

Ao traduzir para a realidade carioca a iniciativa paulistana, o Rio de Janeiro visa promover o uso da bicicleta como veículo de lazer, uma estratégia válida na valorização da bicicleta, mas que também parece desconhecer o histórico da cidade. As ruas de lazer são um enorme sucesso, avenidas abertas para pessoas, independente do veículo, são transformadoras.

As ciclovias operacionais são um enorme sucesso de público Brasil afora, mas a sinalização permanente confunde e deseduca ciclistas e motoristas durante a maior parte do tempo em que a iniciativa não está em operação. Além disso, concede um privilégio aos ciclistas em detrimento de skatistas, patinadores e principalmente pedestres. Afinal basta uma caminhada na Avenida Paulista em um domingo para ter a alegria de ve-la repleta de bicicletas em circulação e a tristeza de ver que as calçadas seguem lotadas demais. Pedestres, skatistas e patinadores certamente preferem ruas de lazer.

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Retratos e inspiração

A visita de Nic Grobler ao Brasil, em especial à São Paulo, foi um momento de inspiração para ciclistas e um convite para conhecer mais sobre os ciclistas da África do Sul, um país que, mesmo do outro lado do Atlântico, tem problemas e potenciais semelhantes em relação ao uso da bicicleta.

A bicicleta é veículo capaz de promover a igualdade, mas acima de tudo, é um meio de despertar um outro olhar. Através das pedaladas é possível ver beleza na simplicidade, valorizar a importância das pequenas coisas. Ao olhar cada imagem congelada dos ciclistas sul africanos, torna-se impossível sair as ruas sem imaginar as histórias de paixão pela bicicleta de cada um dos ciclistas que circulam pelas ruas e estradas do Brasil.

Permanece o convite a todos para conhecer mais sobre o Bicycle Portraits, encomendar os livros e, para os mais inspirados, retratar ciclistas brasileiros.

Bicicleta, ferramenta de aproximação

Pedalando pela África do Sul, os fotógrafos Stan Engelbrecht e Nic Grobler produziram uma série de livros com retratos de ciclistas sulafricanos chamado de Bicycle Portraits (ou Retratos de Bicicleta). Em visita à São Paulo, Nic irá expor algumas das fotos do livro na Ciclo Vila e participar de um bate-papo informal nesse sábado 07 de julho, às 14h30. Confirme presença no facebook.

A África do Sul é um planeta dentro de um único país, com diversas culturas, e uma história trágica de segregação e racismo. Através desse projeto, esperamos poder oferecer as pessoas um olhar sobre a vida de cada um através de um objeto dotado de movimento, praticidade e alegria – a bicicleta.”

Do outro lado do Atlântico, através da arte, a bicicleta busca ser uma ferramenta de assistência e construção da independência de uma parcela menos favorecida. Essa reflexão é também necessária e está cada vez mais em curso no Brasil, a presença de um ciclista do “sul do planeta” nos ajuda a repensar nossa própria realidade através de um país que tem diversas semelhanças com o Brasil.

Democracia e quatro rodinhas

A riqueza de uma cidade também se mede pela qualidade e diversidade de seus espaços públicos. Pobre seria a filosofia sem a ágora nas cidades gregas, fraco seria o samba sem as ruas da Lapa carioca, cinza seriam as artes plásticas francesas sem o burburinho noturno de Montmarte.

O ano é 1974 em uma ladeira ao lado de uma praça na cidade de São Paulo. Pessoas tomam a rua para a prática do que viria a ser o segundo esporte mais popular no Brasil, o skate. Quatro rodinhas numa prancha de madeira, o espírito do surfe para quem vive longe do mar. As imagens do vídeo acima, prestes a completar 40 anos, são registro histórico da cultura do skate, mas por pressão de um grupo de moradores a área está sendo modificada para inviabilizar a circulação das quatro rodinhas. Perderá a cidade mais um microcosmo de uma cultura.

A subprefeitura da região está fazendo obras no local visando fazer a “acalmia de tráfego”, ou em inglês, o “skate traffic calming”. No lugar do asfalto, faixas de paralelepípedo cuja única função é inviabilizar a circulação dos skatistas, acostumado a descer essas mesmas ladeiras há décadas.

Pode até parecer um pequeno detalhe, apenas mais uma intervenção urbana em uma cidade com pequenos e grandes conflitos por espaço de circulação e contemplação. Mas São Paulo é carente de ar livre, tanto que por aqui até viaduto torna-se importante área de lazer. Dentro dessa lógica, a perda de qualquer espaço público onde pessoas se unam para socializar de maneira livre e gratuita é uma grande perda para a cidade.

Talvez a presença dos praticantes do skate não fosse interessante para os moradores, mas certamente menos interessante é a total ausência de vida nas ruas. É no silêncio e na escuridão de ruas ermas que se prolifera a insegurança urbana, aquela que faz vítimas de assaltos e também aquela que incentiva mais e mais pessoas a ficarem em casa ou em espaços coletivos fechados, murados.

O conflito entre interesses particulares e coletivos, entre circulação e contemplação em São Paulo seguirá por muitos anos, mas é de fundamental importância que os eternos adolescentes do skate e os que querem a ordem e o silêncio nas ruas consigam uma convivência harmônica. Afinal se hoje acabou uma ladeira para a prática de surfe sobre rodas, amanhã será uma praça vazia sem crianças brincando, sem idosos jogando dominó. Assim aos poucos a rua será tomada por interesses menos nobres dos que se aproveitam dos vazios urbanos para a prática criminosa.

Para além disso, da criatividade jovem é que nasce a evolução humana. Também nos anos 1970, um grupo de garotos na Califórnia passou a invadir piscinas particulares vazias para voar nas ondas fixas de asfalto. Esses “pequenos deliquentes” hoje fazem parte da bilionária indústria dos “esportes radicais”, como mostra o documentário Dogtown & Z Boys.

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‘Pico’ de skatistas há 40 anos, ladeira recebe paralelepípedos – Folha.com
Prefeitura inicia obra na Praça Joanópolis para impedir a prática do skate – Espn.com.br
A privatização da rua – blog ZONA 10