Ciclofaixa, motofaixa e segurança

São Paulo irá testar o compartilhamento em uma pista exclusiva entre motocicletas e bicicletas. Cabe então algumas reflexões sobre a dinâmica dos veículos e relembrar a trajetória de implementação das motofaixas em São Paulo.

Alimentada pelo esforço de seu condutor, a bicicleta tende a desenvolver uma velocidade final menor, mas é capaz de manter uma velocidade média perfeita para deslocamentos de curta e média distância. Além disso, em caso de queda ou colisões a baixa velocidade é grande aliada do condutor em garantir danos menores.

Veículos motorizados populares, as motocicletas guardam com a bicicleta uma única grande semelhança, a quantidade de rodas. É justamente o motor que diferencia um veículo do outro por influenciar diretamente na velocidade final, aceleração e danos ao condutor em caso de colisão e queda.

As motofaixas em São Paulo foram um teste para buscar aumentar a segurança das motocicletas, os resultados foram decepcionantes. A maior velocidade em uma pista exclusiva aumentou o número de colisões e atropelamentos envolvendo motocicletas e a iniciativa não foi ampliada desde de 2010, quando cicloativistas sinalizaram informalmente a motofaixa da Vergueiro com pictogramas de bicicletas.

Eis que 2 anos depois as bicicletas irão ser toleradas aos domingos e feriados justamente na motofaixa da Vergueiro. A idéia é integrar o centro da cidade à nova ciclofaixa de lazer da Avenida Paulista. A iniciativa de compartilhamento é louvável mas parte de dois precedentes maléficos para uma boa política cicloviária. O primeiro é improvisar “onde dá” para implantar uma infraestrutura para circulação de bicicletas, de maneira provisória. O segundo malefício é promover a circulação de bicicletas em grandes avenidas junto ao canteiro central.

O Brasil ainda está descobrindo seus caminhos em relação ao planejamento cicloviário, testando soluções e criando um padrão. O “Caderno de Referência para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades” publicado pelo Ministério das Cidades foi um dos passos para a criação de um padrão de infraestrutura cicloviária nele a referência para uma ciclofaixa é de uma largura total de 1,80m, sendo 1,20m para circulação de bicicletas em sentido único, 0,2m de isolamento junto ao meio fio e mais 0,4m de isolamento do trânsito motorizado.

O Caderno de Referência traz ainda referência a outros tipos de infraestrutura, tanto ciclovias, quanto também iniciativas de moderação de tráfego que visam readequar o viário para o compartilhamento entre motorizados e bicicletas.

Ainda sem normas definidas para todas as situações, ainda temos espaço para experimentações nas ruas que garantam o aumento da segurança efetiva e da sensação de segurança dos ciclistas. Dentro dessa lógica, é feliz a definição do Código de Trânsito que diz que a bicicleta deve circular pelos bordos da pista, sem especificar qual o bordo. Assim sendo, uma ciclofaixa do lado esquerdo não está incorreta, mas em um canteiro central de uma avenida ela ao mesmo tempo que diminui os conflitos com veículos estacionados e ônibus, também força o ciclista a cruzar uma grande avenida e todas as suas pista toda vez que quiser chegar à infraestrutura cicloviária. A opção mais correta, seja ao lado esquerdo ou direito da via, é sempre garantir que o ciclista circule junto aos prédios, destino final e inicial das viagens.

Por ser exemplo para o resto do país, os acertos e erros cometidos no planejamento da cidade de São Paulo atingem diversas cidades do resto do Brasil, um país ainda sem um padrão consolidado de infraestrutura cicloviária. O uso compartilhado da motofaixa é medida excepcional que depende do baixo fluxo de motocicletas para ser seguro para o ciclista. No entanto, é precedente para se alastrar o vício do improviso na implementação de melhorias para a bicicleta caso não venha acompanhada de dispositivos permanentes para diminuir a velocidade do fluxo motorizado e assim garantir a circulação segura dos ciclistas com sua baixa velocidade final e velocidade média respeitável.

Para contribuir para a discussão, tá rolando uma pesquisa com a pergunta: “É possivel compartilhar a motofaixa da Vergueiro com bicicletas?

Para aumentar a segurança dos ciclistas

Existe uma teoria de que o aumento no número de pedestres e ciclistas está diretamente ligado à diminuição no número de ciclistas e pedestres mortos no trânsito. A princípio a idéia pode parecer contraditória, mas uma análise completa dos dados ajuda a apontar a melhor maneira de promover a segurança viária dos elementos mais frágeis no trânsito: o incentivo para que mais pessoas se desloquem à pé ou em bicicleta. É a famosa segurança na quantidade.

Muitas vezes a segurança viária é dependente de mais e mais regulamentação, com vultosos investimentos em sinalização, organização, semáforos e diversos outros dispositivos. Mais simples é facilitar e garantir o fluxo seguro de pedestres e ciclistas, pressuposto inclusive previsto e muitas vezes ignorado no artigo 24 do Código de Trânsito Brasileiro.

Diz ele:

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

(…)

II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

(…)

XVI – planejar e implantar medidas para redução da circulação de veículos e reorientação do tráfego, com o objetivo de diminuir a emissão global de poluentes;(…)

Pela quantidade de incisos desse único artigo, fica claro que a legislação mergulhar diversos meandros e orientações específicas e acaba por se perder. Fica em segundo plano o pressuposto mais básico de garantir a vida dos diferentes usuários das vias. Nas palavras de um político conservador inglês:

“Regulação demais diminui a responsabilidade individual, desincentiva a negociação interpessoal e na busca por diminuir os riscos, acaba por aumentá-los.”

Os números já estão em favor da bicicleta. No Brasil ciclistas representam são 7% dos deslocamentos e 4% dos “acidentes”, automóveis 24% dos deslocamentos e 27% dos “acidentes”, enquanto as motos representam 12,6% dos deslocamentos e 22% dos “acidentes”. A fonte desse dados é o cruzamento de dados da “Pesquisa IPEA –Mobilidade Urbana 2011” e o “Mapeamento das Mortes por Acidentes de Trânsito no Brasil – Confederação Nacional de Municipios 2009”.

No pioneiro estudo sobre segurança viária de ciclistas e que usa o termo “segurança na quantidade” de maneira pioneira a matemática é simples:

“Consideradas diversas circunstâncias, se o uso da bicicleta dobra, o risco individual de cada ciclista cai em aproximadamente 34%.”

Portanto desafiar o senso comum em relação a segurança viária é sair da bolha e ganhar as ruas. Nelas será possível entender que se há uma “guerra” no trânsito ela se resolverá com a humanização. A agressividade que hoje toma conta das ruas e afeta ciclistas, motoristas e pedestres, vitimando sempre os mais frágeis, em grande parte se deve ao desenho do espaço urbano.

As cidades ao invés de espaço de circulação somada a interação humana tornam-se versões mal adaptadas de autoestradas. A segregação viária presente em rodovias visa garantir velocidade e segurança para os veículos motorizados, ao ser aplicada no espaço urbano, essa lógica subverte o sentido das cidades e do espaço público das ruas.

Com informações do Grist:
There’s safety in numbers for cyclists
The a$#&^% biker problem: Why it’s hard to share the road

Para repensar a linguagem

O uso corrente de diversos termos no que se refere à mobilidade urbana são baseados no vocabulário da engenharia de tráfego dos 1950, 1960. Repesensar os significados das palavras é um caminho fundamental para mudar o entendimento sobre a forma e função da cidade. De maneira brilhante a cidade norte-americana de West Palm Beach na Flórida produziu um documento dirigido aos técnicos da área de trânsito para que pudessem substituir palavras tendeciosas relativas à investimentos e políticas públicas de trânsito.

A diretiva é bastante clara, já na definição do que é tráfego:

A palavra tráfego é corriqueiramente usada como sinônimo de tráfego de veículos motorizados. Existem no entanto diversos tipos de tráfego nas cidades: tráfego de pedestres, tráfego de bicicletas, tráfego de trens. Para garantir a objetividade, se você quer dizer tráfego de veículos motorizados, então diga tráfego de veículos motorizados. Caso esteja se referindo a todo tipo de tráfego, então diga tráfego.

Outro termo empregado de forma errada e que tem definição mais precisa é em relação ao uso da palavra acidente:

Acidentes são eventos danosos em que algo acontece por um azar inesperado ou por acaso. Acidentes implicam na ausência de culpados. É amplamente sabido que a grande maioria dos acidentes (de trânsito motorizado) são previniveis e além de ser possível apontar culpados. O uso da palavra acidente também reduz o grau de responsabilidade e da gravidade associada à situação e invoca um certo grau de simpatia à pessoa responsável. A linguagem objetiva inclui os termos colisão e batida.

Por conta dessa visão, que após o atropelamento dos ciclistas de Porto Alegre em fevereiro de 2011 durante a bicicletada, o termo #naofoiacidente foi um dos mais comentados no twitter. A situação se repetiu na última sexta-feira, 02 de março, quando mais uma ciclista foi morta por um ônibus na avenida Paulista e também em outras cidades brasileiras. O tema foi gancho para um debate ao vivo com Zé Lobo, presidente da Transporte Ativo, e o jornalista ambiental André Trigueiro, assista.

O manual de West Palm Beach ainda trata de diversos outros termos, alguns mais, outros menos simples de serem traduzidos para a realidade brasileira. Em português por exemplo a maior distorção do planejamento viário tupiniquim é o uso do termo “não-motorizado” para tratar de pedestres, ciclistas e outros meios de transporte ativos. Assunto já tratado em um outro post (Transporte não-motorizado).

Exemplos a serem resignificados existem em abundância. Quando uma via fica restrita à circulação de veículos motorizados a comunicação oficial é de que a via foi “fechada”, quando o correto seria dizer justamente o contrário, que a via foi aberta exclusivamente para o tráfego de pessoas.

Repensar o discurso e o uso das palavras é um primeiro passo fundamental para ordenar prioridades e atualizar o planejamento urbano. Afinal, nada mais antiquado do que usar gírias de meados do século XX em pleno século XXI e de certa forma é isso que temos aceitado fazer no que se refere à mobilidade urbana.

A publicação original do manual da prefeitura de West Palm Beach está disponível em pdf. Mais informações no blog Human Transit. O blog “Vá de Bike”, também traz sua visão sobre porque “acidente” não descreve os atropelamentos de ciclistas.

Carnaval na Avenida

Carnaval, além da festa de Momo com desfiles, blocos e a alegria incontida é também um momento de êxodo temporário das grandes cidades. Quando ruas e avenidas deixam de ser espaços de congestão motorizada para se tornarem vazios urbanos ou festas de rua.

A cidade vai sempre além da quarta-feira de cinzas e as vidas dos urbanóides voltam a uma rotina mais regrada. Fica para trás o momento excepcional da festa da carne, o asfalto tomado por pessoas, ou a imensidão vazia das grandes avenidas. Há que se esquecer o lazer distante na praia ou no campo e voltar ao concreto.

Para além do ócio, da festa e da alegria, podemos trazer para a rotina um pouco do que nos ensinam as viagens e os momentos de folia. Caminhar na areia fofa com a brisa do mar e o barulho das ondas é insuperável, mas no dia a dia é possível procurar o caminho mais arborizado de calçadas mais bonitas e ir a padaria, ao trabalho ou até ao dentista.

Quando não houverem boas calçadas, nem uma ciclovia junto à areia do mar, a solução é pressionar para modificar a paisagem do local onde construímos nossas vidas. Tudo para que a volta de um feriadão prolongado seja mais uma simples transição do que um momento de tortura.

Pedalar é a cidade em cores

Mundo afora existem cores que não enxergamos, paisagens invisíveis. Pedalar tem um pouco da arte de descobrir o que antes era desconhecido. A publicidade acima é perfeita em ilustrar o lado maravilhoso da rotina do ciclista urbano.

Um olhar mais atento é capaz até de vislumbrar na realidade de nossas grandes cidades o que a animação publicitária ilustra. Em meio a tantos veículos motorizados, grandes e barulhentos, pode parecer difícil imaginar a existência de ciclistas. Mas eles estão circulando, basta ficar atento. Há os que optem por circular pelas calçadas para compartilhar o espaço com os pedestres. Existem muitos circulando por vias arborizadas, longe das grandes e congestionadas avenidas. Tem bicicleta rodando ali pelo canto daquela ponte. E tem também muito ciclista que espera a semana toda para ganhar as ruas aos sábados e domingos.

A cidade não tem manual de instruções, nem procedimento técnico capaz de defini-la. Mas para alcançar um pouco mais de felicidade urbana, é preciso antes de mais nada praticar felicidade. Primeiro através do olhar, em seguida, trabalhando corpo e mente em cima de uma bicicleta.