Terror, fuga e felicidade

A cidade de São Paulo mede os quilômetros de seus congestionamentos e eles costumam ser maiores quando antecedem feriados prolongados. Mas a cada 4 anos surge o fenomenal congestionamento pré-jogo do Brasil.

Logo na estréia o terror se impôs sobre quem depende da mobilidade urbana motorizada que se faz no asfalto. A fuga para a alegria e êxtase de acompanhar a estréia do Brasil na Copa do Mundo foi precedida pelo que mais próximo até hoje do “congestionamento final”, aquele em que finalmente as ruas da cidade se tornarão um único e gigantesco estacionamento.

Refém das grandes distâncias, o cidadão paulistano naturalmente evita o “congestionamento final”. As viagens se reorganizam e o fluxo segue nas ruas saturadas. O espaço restrito funciona como inibidor de vontade e muitos optam por deixar as carruagens guardadas ao invés de se somar a imobilidade na rua.

Essa foi a lição para o segundo jogo da seleção Brasileira. Em uma mesma segunda-feira a volta de um feriado prolongado se somaria a interdições viárias no centro da cidade e na zona leste. Além do Brasil nos gramados, haveriam também 22 em campo no Itaquerão e milhares de pessoas a caminho do estádio.

Novamente o terror tomou conta, o prefeito buscou decretar feriado municipal e o legislativo barrou a iniciativa. Mas o medo do maior congestionamento de todos os tempos exerceu seu papel e quase que por milagre a cidade fluiu.

Enquanto isso, a cidade de quem pedala segue imune ao terror e fuga. Todo ciclista cotidiano além de esbanjar felicidade no ir e vir diário (a famosa injeção de endorfina diária), é capaz de descobrir no restrito espaço urbano de circulação a alegria da liberdade. A rua além de meio de deslocamento é também espaço de lazer e a diversão cotidiana é poderosa.

O ciclista, por ser livre, não anseia pela fuga. Seja a fuga através do congestionamento nas estradas em feriados, seja a fuga para ir logo para casa assistir ao jogo do Brasil. Nesta simples constatação está parte do segredo subversivo da bicicleta.

Reescrever o espaço urbano das ruas é possível, pedalemos.

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Torcedores sem cantigos e cidades sem repertório

 

Um som repercurte mais alto nos estádios e se infiltra também na cobertura televisiva: “Eu sou brasileirooooo, com muito orgulho, com muito amooooorrrrr…”. Pouco importa se o Brasil está em campo, se o jogo é da Argentina com a Bósnia ou Rússia e Coréia do Sul. A insistência e repetição constante do hino da torcida pode até parecer interessante, patriótica ou empolgante. Mas a verdade é que trata-se de uma composição de 1949 e que ganhou popularidade nos últimos anos e ainda persegue os ouvidos mais atentos sem concorrência ou sem novidades.

Como resumido no blog Chuteira Preta: a torcida de estádio parece estar respondendo a alguma ofensa não-enunciada. É como se o brasileiro entrasse xingado e cuspido nas arenas, e não extraísse disso mais do que a força para dizer: “Eu gosto do que eu sou”.

Frequentar estádios em jogos de futebol com torcidas empolgadas e genuínas é uma experiência mágica em que o futebol mostra sua força como paixão de massas. A culpa da insistência no hino modorrento do público brasileiro certamente tem pouca relação com os “estádios padrão Fifa”, já que nossos vizinhos argentinos, chilenos, colombianos e uruguaios parecem ter trazido na bagagem a empolgação de partidas da Copa Libertadores da América. Ou seja, a paixão pelo futebol sobrevive ao estádio shopping center.

 

A diferença talvez esteja na origem dos torcedores. Enquanto os estrangeiros deslocaram-se de longe atrás da sua seleção, o público brasileiro é composto menos por fanáticos pelo esporte bretão e mais por quem busca viver a experiência única de ter uma Copa do Mundo em seu país e em sua cidade. Da mesma forma como os hinos estão prontos e foram compostos no século XX, o repertório urbano brasileiro até se assenta no que se criou décadas atrás.

Só mesmo a falta de repertório para explicar o caos pré-jogo do Brasil. São Paulo, cidade que ter a obsessão de medir congestionamentos, emplacou mais de 309km de filas. Isso pelas contas oficiais, subestimadas. Em um cálculo um tanto quanto solto, um jornal paulistano estimou que fossem cerca de 100.000 pessoas presas em confortáveis carruagens motorizadas, e que acompanharam pelo rádio ao menos o começo da partida.

O problema ganha contornos trágicos quando a administração municipal prefere intervir junto ao legislativo para decretar um feriado municipal no próximo jogo ao invés de buscar alternativas. Sem o feriado, o rodízio de veículos foi expandido, as pistas expressas para ônibus irão operar durante todo o dia e os funcionários municipais terão ponto facultativo.

Todo um esforço para que mais pessoas, possam ficar presas em congestionamentos menos longos dentro de seus veículos privados a caminho de espaços privados onde irão assistir a um jogo de futebol que mobiliza todo o público brasileiro.

A cidade corre com pressa para chegar logo enquanto sofre congestionada e para. Sem repertórios de meios de transporte, sem opções públicas e gratuitas para acompanhar o futebol São Paulo mostra que seu maior problema ainda está na pobreza de opções livres nas ruas. Em cada praça um telão, em cada rua uma alegria. Copa do Mundo certamente rima com expandir usos e trazer mais pessoas para o espaço público.

Enquanto não houver criatividade e paixão para construir e pensar novos cânticos e novos caminhos, seguiremos com hinos antigos e congestionamentos previsíveis e intransitáveis.

 

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Uma cidade sem alternativas

Os metroviários de São Paulo estão em greve, uma categoria de trabalhadores em uma queda de braço contra o estado de São Paulo. A batalha se trava pela força, por métodos tradicionais de empregados versus patrões.

Como em todo momento de crise, a cidade mostra suas debilidades estruturais e as pessoas buscam alternativas ou sofrem em opções já conhecidas. A narrativa da cidade gira em torno de um mesmo tema, o tempo gasto de casa ao trabalho. Horas para percorrer poucos quilômetros, muito aperto nos ônibus e nas longas distâncias dos trens de subúrbio.

Olhares atentos permitem ver mais pessoas caminhando distancias maiores e ciclistas que descobrem os prazeres e a praticidade de pedalar ao trabalho. As greves passam, a cidade segue. Mas a cada crise, é hora de repensar a cidade construída e a cidade sonhada.

Sonho possível é o da cidade plural em que transportes se integram para cumprir a função de permitir que pessoas possam ir e voltar de seus destinos. Seja qual for o motivo.

Muito se fala nas horas de pico, na cidade que vai e volta do trabalho, mas existem outras. Existe o espaço do lazer na cidade, a possibilidade de distâncias menores entre onde se ganha o pão e onde se dorme.

Nas ruas e avenidas da cidade seguirão sendo feitas as reivindicações políticas por melhores salários e condições de trabalho de quem garante o funcionamento do transporte público. Uma batalha de forças que precisa ser feita com o propósito final de garantir dignidade ao trabalhador e também a quem é transportado. A cidade afinal é ambiente de trocas e as desigualdades econômicas ainda são o maior drama urbano brasileiro.

Drama quase invisível. Afinal o discurso corrente do senso comum que repensa a mobilidade é de “atrair o motorista do carro particular para o transporte público”. Um caminho que, na realidade brasileira, demonstra claramente nosso sistema de castas. Incentivos para quem opta pela mobilidade individual motorizada parece ser um propósito mais importante do que garantir boas alternativas de deslocamento além proximidade de moradia, trabalho e lazer. Aspectos fundamentais para definir os rumos urbanos para o futuro e que passam mais pela promoção de incentivos corretos do que pela garantia de privilégios a quem tem condições socioeconômicas privilegiadas.

A “meritocracia” de comprar a própria mobilidade através da carruagem própria se mostrou um fracasso em todos o mundo. Soluções em construção tem sido coletivas e promotoras da diversidade e pluralidade urbanas. Cidades pensadas para as pessoas e nas quais mover-se é um direito, não um privilégio. Esses espaços urbanos tem por princípio tratar a todos como cidadãos de direitos, em uma trajetória sempre cheia de ajustes.

Pontes urbanas e nossas cidades

Quem já pedalou pelas ciclovias holandesas certamente se impressionou com as pontes e as conexões quase invisíveis entre os dois lados de um canal ou simplesmente para passar debaixo de uma auto-estrada.

São Paulo é uma cidade partida, talvez até mais partida do que o Rio de Janeiro de Zuenir Ventura. Entre rios, a paulicéia cresceu e desvairou-se. Para além das margens centrais foram morar os migrantes pobres e os que foram expulsos da zona central cada vez mais valorizada, especulada e gentrificada.

Mas como cidade de rios, ainda que muitos deles asfaltados, São Paulo tem pontes e por incrível que pareça, não há ponte, viaduto ou passagem subterrânea que dê as boas vindas para pedestres e ciclistas cruzarem de uma margem a outra dos rios. Honrosas excessões as antigas pontes que cruzam o vale do rio Anhangabaú, onde aliás não se vê mais água, ainda que as chuvas de verão ocasionalmente nos façam lembrar do porquê do nome “vale” associado a região.

Para além de pontes para conectar a cidade partida entre o centro expandido e o restante da cidade, São Paulo precisa de um pouco mais de cidade ao redor dos seus rios. Afinal como comprova quem caminha nas margens dos rios Tietê e Pinheiros, há muito pouco de agradável e divertido para ser visto por quem trafega pela região em velocidades humanas.

Até que tenhamos portanto todas as pontes humanizadas, teremos de construir juntos uma cidade mais interessante. E o primeiro passo para esse nova cidade é garantir que mais pessoas possam desfrutar, mesmo das partes menos interessantes, a pé ou de bicicleta.

Fotos via treehugger:
7 bike bridges in the Netherlands offer us a few lovely lessons

Soluções rodoviaristas

O século XX foi o século do automóvel, mas não foi por acaso. Muita gente ganhou muito dinheiro promovendo a (i)mobilidade urbana do transporte individual motorizado.

Um dos maiores exemplos da mentalidade rodoviarista do século passado foi Robert Moses, homem quem gentrificou Nova Iorque e elaborou um plano de “avenidas parque” que “renovou” a metrópole através da expulsão dos mais pobres e abriu caminho para a circulação motorizada em detrimento de qualquer coisa que estivesse no caminho.

Em sua biografia Moses explica a diferença entre construir rodovias em terras vazias e no meio da cidade: “A única diferença é que na cidade há mais pessoas atrapalhando o caminho”.

Foi ainda em 1950 que o ilustre rodoviarista, um anti-urbanista por execelência, elaborou  o “Programa de melhoramentos públicos de São Paulo”. Nesse plano, tal qual um profeta do apocalipse, Moses prevê que o número de automóveis iria aumentar muito. A capital paulista tinha 1 carro para cada 32 habitantes, atualmente essa relação é de 1 para 2.

Como solução de “melhoramento” para a cidade, Moses propôs que São Paulo se livrasse de “bondes obsoletos” e na impossibilidade financeira de se construir metrô subterrâneo, adotasse os ônibus. Uma “solução razoável e econômica”, que seria feita através da aquisição de 500 veículos coletivos e claro, melhorias na pavimentação asfáltica.

Nos anos 1950 (e ainda hoje), quando um rodoviarista afirma que são necessários investimentos em transporte público, pode-se deduzir que esperasse a criação de grandes e formosas avenidas que por acaso também poderão ser utilizadas por ônibus, mas que irão beneficiar e aumentar o número de viagens em veículos motorizados particulares.

Ao longo dos anos São Paulo deixou de lado a hipocrisia rodoviarista e efetivamente foi capaz de direcionar vultosos investimentos em túneis, pontes e viadutos simplesmente para facilitar os deslocamentos motorizados. Minhocão, passagens subterrâneas e a Ponte Estaiada comprovam.

Pela linha de raciocínio de Robert Moses, era preciso se livrar das muitas pessoas no caminho que atrapalhavam a livre marcha do progresso, que no século XX significava automóvel.

Felizmente a noção de progresso rodoviarista já é amplamente contestada. Em Nova Iorque e ao redor do mundo. Afinal, os investimentos em mobilidade individual motorizada ao longo das últimas décadas ajudaram na promoção da decadência dos centros urbanos em nome da expansão para os subúrbios.

O desafio que nos apresenta o século XXI é o embate entre a degradação urbana promovida pelas grandes avenidas e os caminhos para os subúrbios e a reconstrução de uma cidade na escala humana em que haja mais densidade e diversidade.

São Paulo precisa de uma nova semana de 1922 que promova a “antropofagia urbana”, capaz de misturar a periferia pobre com os condomínios de luxo. Ter junto e misturado Alphaville, Cidade Tiradentes que só assim “resolveriam” a Cracolândia.

Vias expressas como a 23 de maio que dêem lugar a ruas de bairro. Tudo interligado por espaços para pessoas e redes de transporte que sejam mais que ônibus lotados para quem não conseguiu financiar um carro.

Nessa nova cidade muitas bicicletas irão circular, e ao invés de expressas vias travadas, teremos velocidades humanas constantes e descongestionadas.

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Textos de apoio:

Transporte coletivo já era ‘urgente’ em 1950 – André Monteiro – Folha de S. Paulo

– O homem que retalhou NY – Sérgio Dávila – Folha de S. Paulo