Cidades precisam de escala humana

Calçada sufocante em São Paulo

Calçada sufocante em São Paulo

Cidades são organismos vivos e felizmente sempre em mutação. Quem vive a rede urbana através do transporte público, o de transporte ativos, descobre em suas caminhadas e pedaladas que muitas vezes o ser humano parece ser um convidado trapalhão em um ambiente de amplitude e linhas retas para a circulação viária de motorizados.

A engenharia de trânsito, aquela que planeja a cidade para fluxos motorizados, nos leva a crer que a fluidez é uma entidade a ser preservada acima de todas as outras necessidades urbanas.

Dentro dessa lógica pode parecer natural organizar fluxos, sinalizar prioridades e comunicar com placas e sinalizações horizontais os caminhos e descaminhos a serem tomados por pedestres e veículos. Mas essa forma de ação ainda é insuficiente para quebrar a percepção de que o mais importante no ambiente urbano é a escala humana.

Triciclo de carga transporta criança de maneira improvisada enquanto trafega na calçada

Triciclo de carga transporta criança de maneira improvisada enquanto trafega na calçada

Talvez a foto acima explique de maneira precisa o significado de escala humana, ou da sua inadequação nas ruas do Rio de Janeiro a necessidade de locomoção das pessoas. Ir e vir é necessidade para todos e as cidades quanto mais orientadas para o fluxo motorizado, mais inviáveis tornam-se para o próprio fluxo em si. Com isso geram conflitos e desconfortos a todos.

Placas e sinalizações irão ajudar no longo caminho de reverter a noção cultural de que a prioridade urbana é fazer fluir entes motorizados. A prioridade precisa voltar a ser os deslocamentos de pessoas e com essa lógica em mente, todo o resto se reorganiza.

A escala humana nas cidade joga luz sobre a necessidade de mais densidade de espaços de moradia, lazer e trabalho. Traz consigo a necessidade de deslocamentos mais curtos para facilitar caminhadas e pedaladas e tirar a pressão sobre o deslocamento de pessoas através de grandes distâncias. O que pressiona com lotação dos transportes públicos e congestionamentos dos motorizados na infraestrutura viária.

Há um longo caminho para chegarmos à cidades em escala humana. Mas esse caminho já foi iniciado e as cidades que pretendem sobreviver as pressões de um futuro cada vez mais urbanizado precisam trabalhar para garantir que haja variedade de opções e repertório de uso das ruas. O que só é possível quando as necessidades humanas são colocadas acima das fluidez motorizada, tornando os veículos automotores convidados trapalhões dentro da cidade.

Sinalização horizontal para bicicleta em São Paulo

Sinalização horizontal para bicicleta em São Paulo

Campanhas de segurança no trânsito

Não corra, não bata, não morra, respeite. Em geral campanhas em prol da segurança viária feitas por órgãos de trânsito ao redor do mundo começam com negativas ou súplicas para que as regras sejam respeitadas.

Existem também as campanhas amedrontadoras, que visam assustar ao máximo as pessoas para inspirar o sentimento de “não seja o próximo”. De maneira geral o discurso visa sempre manter o status quo, sem jamais questionar a infraestrutura urbana e a lógica das ruas e estradas construídas para a velocidade e fluidez motorizada em detrimento à vida.

Nas palavras do ídolo das pistas Nelson Piquet: “O trânsito no Brasil é muito mais fatal do que um circuito de Fórmula 1.” Chega a ser quase irônico que um dos líderes na promoção à segurança nas pistas, Emerson Fittipaldi, protagonizou recentemente uma campanha que resume a lógica de buscar a mudança de conduta pelo discurso moralista de “deveres individuais”.

O discurso de “despertar a consciência no trânsito” já nasce fadado ao insucesso, já que a condução de um veículo motorizado, de uma bicicleta ou o simples ato de pedalar são movimentos de natureza inconsciente. Afinal depois de aprender a dirigir ou pedalar, tomamos decisões sem precisar refletir sobre cada uma delas.

De maneira consciente as pessoas tendem a diminuir seus riscos e não causar danos a ninguém. Mas tudo na engenharia de trânsito é feito para que os condutores possam se abster ao máximo do ambiente externo e concentrem seus esforços cerebrais em seguir velozes e em linha reta. Respeitando as linhas pintadas no chão, grandes semáforos, faixas de pedestres e placas, comportamento que torna invisível as calçadas e por consequência os pedestres.

A lógica de adequar pedestres e ciclistas a regras de conduta feitas para a segurança viária dos motorizados ainda irá nos brindar com bizarros exemplos de campanhas “educativas” de segurança no trânsito. O mais recente deles vem da Noruega, terra natal do ciclista profissional Thor Hushovd. Um “destemido ciclista” que precisa “compartilhar a via” com motoristas desatentos e sem “dar mole pro azar”.

Parabéns ao órgão de trânsito da Noruega por conseguir unir em uma só campanha o conceito legalista vazio de “compartilhe a via” ao amedrontamento de ciclistas. Tudo isso em um vídeo que mistura esporte e mobilidade da pior maneira possível e estigmatiza o ciclista como um inconsequente em meio ao perigoso mundo motorizado.

 

 

Democracia que se faz nas ruas

Os aumentos nas passagens do transporte público foram o estopim de uma revolta popular ainda indefinida. Muito ainda está em curso através das redes sociais e agora também nas ruas das cidades brasileiras.

Qualquer pessoa que dê valor a democracia tem o dever de tomar as ruas, o dever de dizer que o direito mais sagrado é sair em praça publica e fazer política.

No começo da onda de protestos em São Paulo o senso comum propalado pelos grandes meios de comunicação é do direito à circulação motorizada, e os congestionamentos, ou “trânsito”, causado pelas manifestações. A simbólica avenida Paulista foi liberada a custas de muitas bombas de gás de pimenta na quinta feira 13 de junho. As imagens dos abusos policiais causaram indignação e trouxeram centenas de milhares (milhões) às ruas. Ainda pela revogação do aumento das passagens, e por consequência pelo direito às cidades. Mas outras pautas surgiram.

E como bem definiu Leonardo Sakamoto, as pessoas saíram das redes sociais e tomaram as ruas. Daí surgiram problemas inerentes a presença de massas heterogêneas no espaço público das ruas.

O que aconteceu em São Paulo no dia 17 de junho de 2013 foi talvez a maior reocupação urbana da cidade de todos os tempos. Fez a cidade parar de medir congestionamentos de automóveis e passou a discutir política em todos os cantos.

Houve uma mudança sutil, mas fundamental, a experiência de tantos que caminharam em avenidas que só tinham gente em plena hora do rush. Essa vivência certamente impactou quem estava nas ruas e pode ouvir outros sons, olhar o espaço ao redor e ver como é uma cidade com o fluxo humano. Apesar dos gritos dos manifestantes, a cidade ficou mais agradável e, quem diria, silenciosa.

As imagens das massas nas maiores cidades do país impressionaram e as ruas ainda seguem tomadas regularmente. Parece que o brasileiro redescobriu a beleza do espaço público. Com a vitória contra o aumento das passagens, agora a pauta pelo direito às cidades se diluiu.

Agora que os gritos das marchas do movimento passe livre cederam espaço para o hino nacional e gritos de torcida, aqueles que estão na rua aparentemente perderam o rumo da caminhada.

O caminho para a democracia e o aprendizado de como se fazer política no espaço público é longo. O direito às cidades ainda não está garantido, mas nesse momento o brasileiro parece apaixonado pela sua força e vontade de mudar o país.

 

 

Leia mais:

As manifestações e a mobilidade urbana

Política não se dará mais dentro dos partidos, mas nas ruas

 

 

Ficam proibidos os capacetes para ciclistas

Será que promover o capacete é promover a segurança?

Será que promover o capacete é promover a segurança?

O capacete para ciclistas é e deveria continuar a ser uma opção pessoal de cada ciclista. Mas infelizmente a fé de alguns contamina a percepção e faz com que diversos ciclistas acreditem que é possível promover o uso da bicicleta e ao mesmo tempo os capacetes de isopor para os ciclistas.

Por isso é fundamental que seja extinto o capacete de qualquer peça publicitaria em favor da bicicleta. Alguns motivos:

  1. Não retrata a realidade, afinal nas contagens de ciclistas realizadas Brasil afora, nem 1% dos ciclistas hoje nas ruas usam.
  2. Estigmatiza a bicicleta e o ciclista, afinal se a promoção ao uso da bicicleta é sempre focada no capacete, quem não usa (a maioria dos ciclistas brasileiros) é colocado de fora do modelo divulgado.
  3. O vínculo entre bicicleta e capacete reforçado em peças publicitárias comunica ao público não ciclista que a bicicleta é perigosa e por isso precisa de equipamentos de proteção.
  4. O capacete carrega a noção de que pedalar é coisa de atleta (que normalmente usa capacete).
  5. A presença do capacete na publicidade ajuda a culpabilizar os ciclistas “sem equipamentos de proteção” nas ruas.

Fica portanto o marketing e a promoção ao uso do capacete como função exclusiva dos fabricantes de capacete e não dos que esperam que nossas ruas estejam cada vez mais repletas de ciclistas. Sem distinção de equipamentos.

Ps.: 

Aos amantes do capacete que aqui expressaram suas opiniões pessoais.

Indicamos dois links da European Cyclists Federation (Federação Européia de Ciclistas) – ECF, sobre o assunto:

Porque o capacetes não são eficientes na redução de ferimentos em ciclistas” (em inglês).

Porque a Federação Européia de ciclistas defende o capacete como opção individual e é contra a promoção do medo na publicidade de capacetes (em inglês).

Dois retratos da orla carioca

praia do Arpoador, 1973

praia do Arpoador, 1973

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praia do Arpoador, 2013

Uma cidade se constrói ao longo de anos, décadas. O Rio de Janeiro tem ao longo dos anos, seguido no rumo de humanizar espaços públicos. O mais simples é começar pela praia, de frente ao mar as areias são a essência do que é o espaço público.

Foi no encontro entre as calçadas junto às areias do mar e o asfalto das autopistas da orla que nasceu a malha cicloviária carioca. Lá nos idos dos anos 1990. Época de passeios noturnos nas avenidas junto ao mar que juntavam mais de 5 mil ciclistas.

Hoje a infraestrutura permanente adentrou o continente, expandiu-se pela cidade e pedala para tornar o uso da bicicleta parte do cotidiano de muito mais do que alguns milhares de ciclistas. Os números já apontam serem 1,5 milhão de viagens em bicicleta na região metropolitana do Rio. Número representativo que é maior do que o de viagens por trilhos.

Assim como pedalar, o mais difícil é vencer a inércia. Depois, a bicicleta e a cidade tendem a entrar no ritmo do ciclo virtuoso que melhora a qualidade de vida de quem pedala e a das cidades que tem mais ciclistas.

Conforto, segurança e praticidade serão cada vez mais os aspectos necessários para garantir que a bicicleta possa exercer o seu papel de agente transformador das cidades em ambientes mais adequados à circulação de pessoas no espaço público. E como nem tudo é circulação, os espaços públicos de contemplação também precisam ter a devida atenção.

Palmas para o horizonte visto da pedra do Arpoador, com o morro Dois Irmãos ao fundo.